quinta-feira, 18 de junho de 2009

A crise global e a globalização de uma nova crítica social

A atual crise do sistema financeiro mundial é acompanhada da crise da ciência econômica. O que coloca em xeque a existência desta última é sua tendência em analisar uma realidade dominada pelo processo de globalização sob a ótica dos velhos conceitos da “economia nacional”. Numa conjuntura econômica em que o poder regulador dos Estados sucumbe diante da flexibilidade do capital internacional, torna-se no mínimo esquizofrênica a insistência em estudar o panorama econômico com base em tais preceitos.

Essa é a tese defendida por Robert Kurz em seu texto “Perdedores Globais”, de 1997. Kurz explica como o processo de flexibilização do capital e desregulamentação do mercado desencadeado nos anos 1980, e acentuado pelo desenvolvimento da microeletrônica, da tecnologia de comunicação e transportes, e pelo barateamento dos custos energéticos, ajudaram a moldar uma nova ordem mundial. Tornou-se possível realizar transações comerciais envolvendo mercadorias do mundo todo, em qualquer momento e em toda parte. A produção também ficou livre para espalhar-se por territórios transnacionais. Em resumo, o mercado distanciou-se do Estado; esta separação irreconciliável representa a pedra inicial do processo de globalização e desembocaria na atual crise econômica que atravessamos.

Toda essa guinada que o mundo tomou a partir da década de 1980 – cujos reflexos se fizeram sentir não apenas na esfera econômica, mas também na cultura, na arte e nas relações sociais - passou incólume pela ciência econômica. A teoria ignorou o definhamento dos Estados nacionais e a internacionalização do capital, e continuou a interpretar a nova realidade de acordo com as bases do velho pensamento econômico centrado no conceito da “economia nacional”. Kurz se ressente de que, embora a globalização tenha instaurado uma nova ordem, “o estudo da "economia mundial" ainda não faz parte do currículo universitário”.

Seu ressentimento tem alicerce. Tomando em consideração as dimensões do impacto da globalização, é imprescindível que a ciência econômica esteja preparada para esboçar uma teoria à altura da importância do fenômeno. É desolador que o mundo assista ao acirramento de um processo de conseqüências incalculáveis para o futuro da humanidade, sem que haja uma referencia teórica consistente na qual possa buscar apoio para entendê-lo em toda sua complexidade.

As implicações da globalização atingem a todos. Operando em total liberdade em relação ao Estado, as transnacionais privatizam os lucros. Seus ganhos não são mais convertidos em aumento da receita estatal. Com núcleos de produção espalhados pelo globo, a lealdade à economia nacional não se sustenta. Ao invés de retornarem ao país de origem, os lucros fragmentam-se ao longo de toda a cadeia produtiva distribuída em território estrangeiro.

Com o declínio do estoque de capital nacional, o Estado é incapaz de investir em infra-estrutura e em medidas que contemplem o bem-estar da população. Nas palavras do autor: “(...)o capital estrangeiro não visa mais ao desenvolvimento do país como um todo e é preciso atraí-lo com a redução de impostos e outras regalias. O resultado, porém, é a diminuição do número de empregos, causada pela racionalização, a evasão dos lucros e a ausência de garantias para os investimentos”. Dessa forma, a riqueza gerada pelo mercado livre se concentra nas mãos de uma minoria – “os ganhadores globais” – enquanto relega à miséria uma maioria destituída de seu próprio direito de cidadania – “os perdedores globais”

A descentralização da cadeia produtiva tem outras implicações sociais alarmantes. O "global outsourcing", isto é, a tendência em buscar os custos mais baixos e os lucros mais altos em qualquer região do globo que ofereça as condições mais atraentes, é seguramente o maior entrave ao incentivo a formas de consumo conscientes. A prática de "produzir onde os salários são baixos, pesquisar onde as leis são generosas e auferir lucros onde os impostos são menores", acaba por dar forma a um Frankenstein do consumo. Como esclarece Kurz: “uma mercadoria que será vendida por uma empresa alemã no mercado alemão pode ser elaborada na Inglaterra ou no Brasil, montada em Hong-Kong e o produto expedido do Caribe”.

No entanto, o rastreamento de todas essas etapas de produção é negado ao consumidor. Ao buscar regiões do mundo em que a mão de obra é mais barata, as empresas podem fomentar a super-exploração do trabalho, os salários de fome, o regime de semi-escravidão, o trabalho infantil, entre outras situações de abuso e insalubridade. A mercadoria acabada, vendida na loja, não informa em sua embalagem as condições em que foi produzida ou montada. A impotência do Estado em controlar as atividades das empresas contribui para deixar à deriva o consumidor no momento da escolha. Dessa forma, numa atitude não deliberada, ele acaba por cooperar com um sistema de exploração perversa em escala global.

Como conseqüência da globalização da economia, Kurz compõe um quadro que beira o apocalíptico: “num futuro próximo, em cada continente, em cada país, em cada cidade, existirá uma quantidade proporcional de pobreza e favelas contrastando com pequenas e obscenas ilhas de riqueza e produtividade”. Para reprimir possíveis atitudes rebeldes e extremas por parte dos “perdedores globais”, o autor aponta como única estratégia do Estado o “controle militar”. Seguindo num viés fatalista, Kurz decreta que “a globalização de uma "economia da minoria" tem como conseqüência direta a "guerra civil mundial", em todos os países e em todas as cidades”.

Além de apresentar um impressionante poder de síntese sobre o processo histórico de consolidação e acirramento da globalização, o texto de Kurz traz revelações importantes sobre alguns pontos pouco esclarecidos nas discussões que envolvem o tema. Uma dessas revelações diz respeito ao papel das empresas transnacionais no processo de globalização. Ao contrário do que muitos pensam, as multinacionais não foram precursoras do fenômeno. Ao montar fábricas fora de seus países de origem, no início do século XX, empresas como a Ford e a Wolkswagen não estavam internacionalizando o capital, mas apenas exportando-o.

A prática de exportação de capital decorre da prática de exportação de mercadoria. Grandes empresas como Ford e Wolkswagen perceberam que aumentariam seus lucros se passassem a produzir e montar seus automóveis em outros países, ao invés de apenas exportar as mercadorias prontas. Essa iniciativa, contudo, não colocava em xeque a autoridade das economias nacionais. A cadeia produtiva não se fragmentava em diversas porções do planeta, e o lucro vertido pelas empresas ajudava a engordar as verbas da receita estatal de seus países de origem. Foi somente a partir da expansão do comércio mundial, nos anos 1960, e a desregulamentação do mercado, nos anos 1980, que o termo globalização ganhou vida.

Outra revelação de peso fornecida por Kurz refere-se à contradição de interesses entre as transnacionais e o Estado. O autor esclarece que, apesar de o mercado rejeitar todo e qualquer controle estatal – e através da internacionalização do capital contribuir para a diminuição do arrecadamento de verbas publicas -, ele depende, mais do que nunca, de uma infra-estrutura pública cuja realização é de responsabilidade do Estado. Para tornar possível a movimentação de mercadorias e o fechamento de acordos comerciais ao redor do globo, as empresas necessitam de portos e aeroportos, estradas, sistemas de transporte e comunicação, entre outros bens públicos garantidos por iniciativa estatal.

A única carência do texto diz respeito às possíveis saídas para o impasse. Kurz afirma que, apesar de um regresso às economias nacionais ser improvável, “as portas da política ainda permanecem abertas ao Estado nacional”. Com base nessa afirmação, o autor especula a possibilidade do nascimento de novas formas de organização política que superem o Estado. Kurz indaga se é admissível a concepção de territórios "pós-nacionais" e “campos operacionais situados além do mercado e do Estado”. Faltou esclarecer, entretanto, a natureza desses novos modelos de organização política.

A maior contribuição do texto, no entanto, continua sendo a revelação de que atravessamos uma crise de percepção da ciência econômica. Somente uma teoria adaptada aos novos tempos de globalização - e a conseqüente superação dos velhos conceitos de “economia nacional” - poderá contemplar o problema em sua totalidade e gerar possíveis saídas para que se faça frente à barbárie. Nas palavras de Kurz: “O pensamento inconformista deve ser tão ágil quanto o dinheiro fugidio. O que nos falta, na verdade, é a globalização de uma nova crítica social”.

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