domingo, 31 de maio de 2009

Ah, a globalização!

Por Karla Romero

Quero, mas não posso ter?! Deixando de lado o aspecto financeiro, a globalização permite o consumo de tudo, tudo aquilo que nossos avôs nunca imaginaram ter. A evolução tecnológica prova a cada dia que não é mais necessário atravessar o mundo para conseguir produtos de última geração, basta acessar a internet e encomendar. Em poucos dias, o pedido estará na porta de sua casa. Aqui nos referimos à evolução dos novos meios de comunicação cada vez mais rápidos e mais eficazes.

O processo de globalização surge em um momento em que a dinâmica do capitalismo necessita criar uma aldeia global que permita maiores mercados para os países desenvolvidos cujos mercados internos já estão saturados e assim, afeta todas as áreas da sociedade, principalmente comunicação, comércio internacional e liberdade de movimentação.

Segundo Robert Kurz, em “Perdedores Globais”, “quanto maior os inventimentos em teconologia avançada e quanto maior a racionalização por meio da ‘lean production’, tanto maior é o desemprego e tanto menor a força de trablaho e do poder de compra nacional”.

No entanto, o que se pode constatar é que a globalização capitalista do século XX não teve como missão histórica provocar uma homogeneização entre os povos e países. A missão econômica da globalização foi a de produzir maior quantidade de bens a custos continuamente mais baixos e maiores do que os sistemas econômicos baseados na alocação administrativa de recursos.

Grande parte desse processo, isto é, comércio de mercadorias, de intercâmbio de serviços e de investimentos, se deu preferencialmente entre os próprios países desenvolvidos e com uma gama reduzida de países emergentes, isso em função da equação “custo-oportunidade”, conhecida dos economistas: alguns países, por razões de soberania nacional, colocaram-se voluntariamente à margem do processo de globalização, aumentando o lado do “custo” em relação aos ganhos de “oportunidade”.

Na última década, entretanto, a China começou a dar o ar da graça. E tudo começou com a aceleração da economia, que vem emplacando uma taxa de crescimento anual superior a 10%, atrás apenas dos Estados Unidos, Japão e Alemanha. E é claro não podemos esquecer os produtos “made in china” que agora deixam de lado o título de mercadorias baratas e de pouca qualidade, exportados para todo o mundo. Hoje a China é o principal país de produção da Nike para calçados, roupas e acessórios, seguido por Vietnã, Indonésia, Tailândia e Coréia do Sul.

Assim como ressalta Robert Kurz, “o capital das empresas não integra mais o estoque de capital nacional, mas se internacionaliza”. Exemplo disso, atualmente a Nike tem 640 fábricas terceirizadas em todo o mundo, 72 delas somente de calçados.

O outro lado da globalização

Por Fernanda Barrelo

Já há alguns anos ouvimos com bastante freqüência o termo “globalização”. Existem os que a defendem pela facilidade de acesso à cultura e hábitos de outros países, pela troca de informações e conhecimentos específicos, acesso a produtos e a facilidade do comercio entre os mais diversos países. Contudo existe um outro grupo que é contrário à globalização por entender que isso descaracteriza cada país, podendo vir a perder a sua identidade e gera exploração dos menos desenvolvidos.

Analisando pelo ângulo econômico, pegando como base o texto “Perdedores Globais” de Roberto Kutz, desde o século XX as empresas deixaram de exportar apenas os seus produtos e passou a construir fábricas em outros países. Como no exemplo citado no texto, em que a Ford deixou apenas de exportar os seus automóveis dos Estados Unidos para a Alemanha, como construiu uma fábrica em território alemão, assim começou a surgir as multinacionais. Um produto de uma empresa americana hoje pode ser elaborado nos Estados Unidos, montada na China e vendido no Brasil.

Não só o mercado produtivo sofreu os efeitos da globalização, como especulativo também. Hoje um investidor da Inglaterra pode comprar ações no Japão. Segundo Kutz, desde a década de 1960, “Todos os componentes do processo produtivo e do sistema financeiro perambulam pelo globo”. Ainda segundo o autor, essas mudanças geraram reações de outros setores como o marketing, por exemplo, que também precisou se globalizar por conta da concorrência.
Mas o que há de ruim nisso tudo? Com essas novas tendências mundiais, a fidelidade à economia nacional se perde, e as estratégias de desenvolvimento econômico vão deixando de existir. As empresas distribuem as suas atividades nos locais que lhes são mais favoráveis, por exemplo, produzir suas peças onde os impostos e a mão-de-obra são mais baratos.

Com isso o Estado perde força, deixa de ser a voz de comando na economia, os produtos não pertencem mais a uma nação, mas sim a uma marca. Além das privatizações das empresas estatais, que muitas vezes são vendidas para empresas internacionais. “O capital estrangeiro não visa mais ao desenvolvimento do país como um todo e é preciso atraí-lo com a redução de impostos e outras regalias. O resultado, porém, é a diminuição do número de empregos, causada pela racionalização, a evasão dos lucros e a ausência de garantias para os investimentos.”, explica Kutz.

As populações pobres são, cada vez mais, deixadas de lado, já que não interessam para o capital estrangeiro por não renderem uma “boa mão-de-obra”, e nem possuírem o conhecimento. O Estado sem estes recursos internacionais pouco fazem por essa população carente, que cresce a cada dia. Para o autor de “Perdedores Globais”, esta globalização, que só favorece uma minoria, faz com globo caminhe para uma “guerra civil mundial”. Conclui o texto afirmando que “o que nos falta, na verdade, é a globalização de uma nova crítica social”.

Lógico que a globalização também trouxe fatores positivos, permite que pessoas que não tem a oportunidade de viajar para outros países, possam ver suas paisagens, conhecer a cultura, ter acesso a informações em tempo real de qualquer lugar do mundo e até mesmo consumir produtos de diversas regiões do planeta. Porém os efeitos colaterais deste mercado globalizado nos fazem questionar até que ponto estas facilidades são positivas ou não.

sábado, 30 de maio de 2009

A verdadeira crise

A pseudo-resistência da globalização se exibe na grande desigualdade, falta de empregos e falta de infra-estrutura que ocorre principalmente nos países denominados “emergentes”. Se por um lado a globalização diminui fronteiras e distancias entre as nações e possibilita o conhecimento de novas culturas, por outro aumenta significativamente a desigualdade social e favorece apenas uma escala superior da população que detém o capital.

O texto de Roberto Kurz expõe claramente a exploração do capital por uma minoria pertencente ao alto escalão da sociedade mundial. Empresas transnacionais possuem a maior parte do capital global. “ Quando a política deseja impor limites `a ação desenfreada do mercado, as empresas globalizadas logo ameaçam com um ‘Êxodo do Egito’”. Esse comportamento denota a incrível fragilidade do Estado diante das empresas privadas, fazendo com que seja necessário o uso de incentivos fiscais para corrigir falhas do mercado.

A “disputa global” está nas mãos de um pequeno grupo de empresários que buscam benefícios egoístas, sem preocupação com o bem-estar alheio. Instalam suas fabricas em países subdesenvolvidos como a China, aproveitando-se da mão-de-obra tão barata que parece escrava, com tintas de exploração sub-humana.

Sim, pode-se dizer que a crise global afeta diretamente as grandes empresas, os empresários e os políticos que dependem do dinheiro que gira em torno da globalização. Mas a globalização, sozinha, pode afetar todos aqueles outros que são explorados injustamente pelos gigantes da elite, que sugam todos os recursos possíveis para suprirem suas necessidades, legal ou ilegalmente. Afinal, a maior preocupação é aumentar a produção e gerar lucros, sem se deter pela fria letra da lei.

O cartomante

Não, esse texto não se trata de uma previsão astrológica. Nem de uma leitura de cartas de tarô. Muito menos algo relacionado à numerologia, runas ou borras de café. Karl Marx apenas analisou de forma diferenciada o que acontecia na história do capitalismo. E, como a história é cíclica...

O autor já havia analisado a mercadoria universal, a estrutura da jornada de trabalho e a circulação de mercadoria. Aqui, no Livro III (“o livro da unidade”), ele pensa a produção e a circulação juntas, o que vai gerar o próximo tema a ser abordado por ele: o processo da mais-valia.

Até então, os pensadores clássicos equacionavam o capital da seguinte maneira: capital (investimento) = capital constante (máquinas, mercadoria) + capital variável (salário) + lucro. Dessa forma, o lucro era visto como alheio à produção, ou seja, ele surgia da circulação.

Mas, para Marx, essa teoria não era capaz de explicar a realidade. Portanto, montou sua própria equação que demonstraria melhor a situação: capital (riqueza) = capital constante (trabalho morto, investimento) + capital variável (trabalho vivo, salário) + mais-valia (trabalho não pago). Esse trabalho não pago gera lucro. Se há mais capital constante (investimento para aumentar a produção), a tendência é que a taxa de lucro diminua, pois é o trabalho vivo que cria riqueza, o trabalho morto apenas a transfere.

Com isso, percebe-se a necessidade do mercado global: ele evita as quedas. É necessário que existam países que transfiram mais riqueza do que acumulem. A redução dos salários diminui os custos e o crédito torna-se uma forma eficaz de transferir a mais-valia.

Marx explica então a composição do capital orgânico, que é dividido em superior (alta tecnologia, pouca mão-de-obra), intermediário e inferior (pouca automação, muita mão-de-obra). Os extremos pensam o capital financeiro de forma parecida, pois os dois precisam de excesso de produção, logo regulá-lo não é interessante.

A concorrência no superior se dá através de empresas que compram novas tecnologias para produzir mais. Por conta disso, a taxa de lucro diminui, ou seja, ele precisa do inferior para transferir riqueza. E, ao adquirir essas máquinas, as velhas são repassadas para o médio.

Estando sempre atrás, o médio precisa vender muito mais para conseguir sobreviver. Para isso, o mercado deve ser global, com uma busca por uma superpopulação relativa de consumo (locais em que muitas pessoas têm condições de compra). Daí há criação do crédito e do mercado de ações (o tal capital financeiro).

Enquanto isso, o capital inferior tenta aumentar sua taxa de mais-valia através de maior tempo de trabalho e diminuição do salário. Isso porque a aquisição de maquinarias ultrapassadas pelo capital médio diminui a competitividade com o inferior.

Voltando ao capital superior, se ele sofre com a queda da taxa de lucro, isso é repassado para os outros. A palavra que ninguém quer ouvir aparece: crise. As temidas crises surgem para que se concentre o capital. Algumas empresas estão quebrando, mas o mercado ainda existe. Aquelas que forem mais fortes sobrevivem, pois não há mais concorrência. O que passa a tomar conta do mercado são as fusões e os monopólios.

Na tentativa de reverter o processo da crise, procura-se salvar os bancos, mas isso não é solução. Do contrário, apenas faz a manutenção dela. O capital médio ainda tem certa força, pois consegue se articular. As taxas de lucro nele e no inferior são relativamente altas (por isso as liquidações).

Marx aponta alternativas para diminuir a tendência da queda da taxa de lucro, o que pode ajudar a fazer a crise não ser tão violenta, ou ainda, auxiliam as oportunidades de acúmulo. Elas parecem ir contra o sistema capitalista, mas na verdade, podem fazê-lo funcionar.

Com o crescimento da superpopulação relativa, mais pessoas podem consumir e o fazem, aumentando ainda mais o trabalho. Ao mesmo tempo, as indústrias se diversificam cada vez mais, o que possibilita novos ramos para investimentos, gerando concorrência.

Além disso, o sistema de créditos e ações permite que qualquer investidor possa fazer parte do sistema, transformando seu dinheiro em capital, sem precisar se tornar um industrial. Isso faz com que as pessoas vejam as possibilidades de enriquecer com mais facilidade, reinvestindo sempre. Tudo isso faz a “máquina” capitalismo girar novamente.

Parece familiar? Foi possível reconhecer a situação atual de EUA, Japão, Índia, China, Brasil e Europa nessa história toda? Quem nunca ouviu falar em Marx pode imaginar que ele vive em algum lugar, escondido, apenas publicando textos novos, conforme a necessidade. Mas não. Isso já aconteceu algumas vezes ao longo do tempo. Toda crise é resultado do mesmo processo, pelos mesmos motivos. Ainda não existe uma receita para evitá-la, mas é importante conhecer análises anteriores com consciência para tentar antecipá-la e contorná-la... Na medida do possível.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Brasil não será um dos perdedores globais

Charge retirada do site "Retratos do Brasil"


Passado o trimestre de insegurança, parece que a sensatez voltou aos mercados. Os investimentos externos no País dobraram em abril. Os estrangeiros têm aplicado recursos tanto no setor produtivo quanto no mercado financeiro. A maior resistência à crise e a alta taxa de juros aplicada no Brasil alavancam os investimentos. Como aqui os juros caem em doses homeopáticas, entrar com dinheiro é um dos melhores investimentos do mundo.

Os últimos seis meses foram o pior período econômico para o mundo desde o final da Segunda Guerra, em 1945. É a conta da farra financeira que explodiu de uma vez em setembro de 2008. Economistas dizem que os sinais de melhora são frágeis. Porém, dólares continuam entrando no Brasil.

O problema é que a valorização do real barateia os produtos importados, o que enfraquece a indústria nacional e pode causar desemprego. Além disso, o produto brasileiro fica mais caro no exterior, o que dificulta as exportações. Mesmo asssim, o Brasil está entre os 15 países mais avançados nessa área. Além disso, com o dólar em baixa, a inflação é controlada e as dívidas em moeda americana ficam com custos reduzidos. O ideal é que a barreira dos R$ 2 por dólar não seja ultrapassada. O Brasil, com uma economia mais diversificada, deve se sair melhor na crise do que economias em que o sistema financeiro era o mais forte (Europa e EUA) e países exportadores (China e Rússia).

O Brasil também se destaca pelo aumento da distribuição de renda e por tirar milhares de pessoas da linha de pobreza e incluí-las no mercado interno. Com o aumento do consumo, há um fortalecimento desse mercado. O País redistribui riquezas e incorpora grandes massas a um patamar superior de conforto e consumo. Já uma das dificuldades apresentadas ainda é a alta corrupção, que infla as contas do Estado e faz com que investimentos sejam menores na nação. Isso acarreta uma diminuição do crescimento.

A tendência da globalização é a acumulação de capitais. Porém, em épocas de crise, novas oportunidades surgem. Depois de dois anos seguidos de expansão econômica na casa dos 5%, não há, até o momento, previsões de recessão, mas é consensual que os percentuais de crescimento serão mais modestos em 2009. O Brasil sofre com a retração mundial do crédito. Com recessão nos Estados Unidos e na Europa, algumas opções para exportações não estão mais aptas. Por isso, a busca por novos parceiros e mercados é a solução. A China, inclusive, já é o maior parceiro comercial do Brasil. Com um mercado interno que tende a crescer e que recebe incentivos para o consumo a todo momento, já que tem uma boa linha de crédito, os chineses continuam consumindo. Apesar disso, é difícil alterar a cultura de exportação para a de consumo. Os chineses tendem a poupar, mas o momento é de gastar. Porém, como são muitos, o consumo continua em alta.

Para que não sejamos perdedores globais, o Brasil precisa exportar bens de alta tecnologia, para que empresas tenham confiança de trazer tecnologia para o País. O governo precisa estimular um ambiente de mais inovação no setor privado. Apesar da crise global, o Brasil é um país que pode se sair bem e chegar ao fim da tensão econômica melhor do que no início. O Brasil apresenta regras democráticas estáveis e um sistema financeiro sólido (com bancos tendo lucros em cima de lucros). Além disso, em comparação com os outros emergentes, chamados de BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China), o Brasil não sofre com conflitos étnicos ou religiosos, tem um único idioma e não enfrenta problemas de fronteira. Com a rápida urbanização do planeta, a demanda por alimentos importados tende a aumentar. A procura por petróleo também é evidente nas próximas décadas (já que a geração em massa de combustíveis alternativos ainda engatinha no planeta). O combustível fóssil é abundante nas costas brasileiras (pré-sal) e somos, inclusive, exportadores e auto-suficientes. Quando tratamos de commodities, estamos entre os cinco maiores do mundo.

O que pode bloquear a chance de sermos líderes é o fato de que os nossos serviços são defasados. Para que mudemos esse aspecto, é preciso investir em educação. A criação de padrões mais sólidos de aprendizado, formação de professores e o aumento do salário para os mestres são fundamentais. O combate à corrupção, a reforma do governo, a revisão das diferenças de renda, a garantia da segurança, a estabilidade de emprego para funcionários públicos e privados e, claro, a reforma da Previdência são outros desafios. O desenvolvimento do Brasil depende disso. A infra-estrutura precisa também ser revista. Os portos, as estradas e as ferrovias precisam de reformas e ampliações.

Com cada vez menos homens "cuspidos" do mercado no Brasil (que desencadiariam a crise do sistema mundial) e com o envelhecimento da população , os custos da segurança diminuem. É claro que ainda são necessários diversos investimentos e a inclusão de várias pessoas ao mercado, mas isso, com o tempo, tende a se consolidar.

Portanto, a economia mundial deixará de ficar limitada aos países ricos e ganhará nova distribuição. A longo prazo, com novos mercados e negociações, o capital não estará acumulado e não ficará sobre uma base restrita. A concorrência globalizada, com a crise, aumenta. Nesse ponto, o Brasil sai da crise como um vencedor global, ao lado dos BRICs.

Já entramos no jogo perdendo

Por Filippo Cecilio


Muito se fala sobre a atual crise que assola a economia planetária sem, contudo, ser apresentada uma única saída sequer para ela. Alguns a chamam de a pior crise da história da humanidade, outros de prova cabal do fracasso do capitalismo. Mas ninguém até agora foi capaz de formular uma resposta coerente o bastante que indicasse o caminho a ser seguido para livrar a humanidade das trevas que podem ser vislumbradas no horizonte,

Essa não é a primeira crise pela qual passa o capitalismo e nem será a última. Apesar de desejar fortemente que esse sistema econômico se pulverize, acredito que ainda não será dessa vez. As condições históricas para isso não se apresentam – ao menos aos meus olhos – como maduras o suficiente para permitir a suplantação definitiva desse modelo, em face da consolidação do socialismo.

E exemplos “animadores” talvez não faltem para que se pense dessa forma. Em primeiro lugar, a própria crise em si e todos os seus desdobramentos. Empregos vêm sendo cortados aos milhões em todo globo, empresas das mais variadas atividades – inclusive bancos! – fecham as portas diariamente, os governos não sabem como socorrer suas economias.

Paralelo a isso, temos nessa última década um crescimento vertiginoso dos movimentos populares na América Latina, com a eleição de presidentes que de uma forma ou de outra, lutam por medidas progressistas e que levam em consideração as necessidades primas das populações exploradas. Esse fortalecimento da classe trabalhadora certamente trará vigorosos frutos no futuro. No caso do Brasil, a desilusão causada e ao mesmo tempo a ilusão que ainda causa nosso presidente operário mereceria um capítulo a parte, que não cabe nessa análise. Adiante.

As saídas até agora imaginadas para resolver o problema dos mercados financeiros são as mesmas já aplicadas em outras situações, e que foram exitosas, dependendo do prisma utilizado para enxergá-las. Como a opinião geral percebe que a atual crise foi gerada pela total desregulamentação dos mercados, algo semelhante àquela que atingiu o mundo em 1929, a saída mais ventilada por economistas, especialistas, jornalistas e tantos outros “istas” é a mesma de 80 anos atrás(!!), a aplicação do modelo keynesiano de intervenção estatal.

A crítica costuma dizer que a esquerda se prende a dogmas e teorias ultrapassadas para explicar as situações presentes – no que de fato tem razão. Mas a direita parece estar seguindo pelo mesmo caminho, se considerarmos a situação atual. Robert Kurz, em seu texto “Perdedores Globais”, faz uma análise na qual afirma que a ciência política está em crise. Essa crise seria decorrente do fato de que as economias nacionais foram substituídas pela globalizada, mas tanto a política quanto a ciência econômica permaneceram atreladas aos seus velhos conceitos e teorias.

Para prosseguir nesse debate precisamos primeiro entender o que é a globalização. Antes de mais nada, é preciso deixar claro que a globalização, longe de ser consensual, é um vasto e intenso campo de conflitos entre grupos sociais, Estados e interesses hegemônicos, por um lado, e grupos sociais, Estados e interesses subalternos, por ouro; e mesmo no interior desse campo hegemônico encontram-se divisões mais ou menos significativas. No entanto, por sobre todas as suas divisões internas, o campo hegemônico atua na base de um consenso entre os seus mais influentes membros. É esse consenso que não só confere à globalização suas características dominantes, como também legitima estas últimas como as únicas possíveis ou as únicas adequadas.

Assim sendo, nada mais natural que o receituário neoliberal tenha sido incorporado religiosamente pelos governos de todo o mundo. A globalização começou a surgir no início da década de 1980, quando as grandes empresas multinacionais passaram a globalizar sua produção. Entretanto, esse não era um processo tão simples, mas sim requereu alguns "ajustes" a fim de tornar possível a prática dessa nova mentalidade empresarial. A economia passou a ser dominada pelo sistema financeiro, os processos de produção se tornaram cada vez mais flexíveis e ocorrendo de forma concomitante em locais difusos pelo planeta. As economias nacionais passaram por um processo de desregulamentação e as agências financeiras multilaterais ganharam papel de grande destaque nesse novo modelo.

As principais exigências que se faziam às políticas nacionais dentro desse novo receituário eram a abertura das economias ao mercado mundial, com a adequação dos preços domésticos aos internacionais, a priorização da economia de exportação e a redução da inflação e da dívida pública, apreço pela inviolabilidade dos direitos de propriedade além da privatização de todo setor empresarial do estado, bem como a participação mínima deste último na regulação da economia.

E nesse contexto global que ganha força e preponderância a terceira forma assumida pelo capital detectada por Marx, que surge da divisão do trabalho que incide sobre ele. Falo do capital portador de juros. O dinheiro acumulado sob a forma de tesouro não pode ser considerado capital. Contudo, se torna capital potencial na medida em que se pode emprestá-lo ao capital produtor de mercadorias e ao capital comercial. Nesse momento o dinheiro assume outro valor de uso, o de produzir lucro uma vez transformado em capital.

Trata-se da forma mais reificada, fetichista, do capital. È dinheiro que gera dinheiro, ou, como disse Marx: “valor que se valoriza a si mesmo sem o processo intermediário que liga os dois extremos”. Ou seja, sem os percalços do processo produtivo. Para o proprietário desse dinheiro, o simples fato dele ser sua posse é razão de juros; em nenhum instante ele consegue conceber que esse é dedução do lucro. Para ele, nada mais natural que seu capital dinheiro lhe renda juros.

Nessa bolha infinita que chegamos à situação atual. Segundo o professor Francisco de Oliveira, essa crise é a primeira da globalização, e por isso mesmo diferente: ela pode ser gestada nas periferias do sistema, atingir o centro e daí propagar-se. “Teoricamente, ela é uma crise clássica na interpretação marxista: é de realização do valor, mas aqui está sua novidade: a produção do valor se dá na China e sua realização nos EUA. É no que pode dar a assimetria entre os 10% de crescimento da China e os modestos 3 a 4% dos EUA. Nos últimos vinte anos, o capitalismo mundial experimenta uma violentíssima expansão: 800 milhões de trabalhadores foram transformados em operários entre a Índia e a China, e em todos os países do vastíssimo arco asiático. Ficaram de fora nessa verdadeira revolução capitalista, a África, como sempre, e praticamente toda a América Latina”.

“E qual a função da teoria, do pensamento crítico internacional? O que nos falta, na verdade, é a globalização de uma nova crítica social”, diz Kurz. Encontrar uma saída para esse impasse não passa necessariamente por encontrar uma teoria completamente nova que venha iluminar as mentes cegas da humanidade. Ao contrário, o que se faz necessário é a adaptação do modelo marxista para os problemas que se colocam hoje. Não precisa ser nenhum gênio da lâmpada para perceber que as dificuldades da classe trabalhadora nos dias que correm são completamente diferentes das vividas nas fábricas inglesas do século XIX.

Ao que parece, a esquerda de uma forma geral tem esquentado seus miolos buscando encontrar alternativas para a crise. Na verdade a alternativa já existe, é o socialismo. Porém, o paradigma socialista tem dificuldade de ser aceito por não ter uma contraposição real ao sistema capitalista desde a queda do muro de Berlim. A maior experiência anticapitalista hoje no mundo são os países mulçumanos que estão longe de ter um regime socialista. Esta crise vem gerando rompantes anticapitalistas mundo afora, mas ainda não se conseguiu apropriar isso para uma saída, de movimento de massa.

O que se busca são formas de inserir esse debate na sociedade, levar essa consciência para além dos intelectuais e dos jovens engajados. Fazer chegar a quem de fato necessita. O jogo que precisa ser virado, no qual todos começamos perdendo, é superar essa letargia quase bovina que toma conta da população, que não parece ter a menor disposição – ao menos agora - para tomar seu próprio destino nas mão e escrever sua própria história.

A senhora Thatcher e o Lord Keynes: fatos e mitos

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4349

A senhora Thatcher e o Lord Keynes: fatos e mitos

A crítica ou o entusiasmo apressado, às vezes esquece que existe um parentesco essencial entre as políticas econômicas de filiação neoclássica e keynesiana, que pertencem à mesma família ideológica liberal e anglo-saxônica, e são estratégias complementares e indissociáveis dentro do sistema capitalista.

José Luís Fiori

A história da segunda metade do século XX transformou a eleição da senhora Margareth Thatcher, como primeira-ministra britânica, no dia 4 de maio de 1979, numa fronteira simbólica entre dois grandes períodos do mundo contemporâneo: a “era keynesiana” e a “era neolibral”. Apesar disto, não é fácil explicar como foi que esta senhora virou emblema da reação conservadora frente à crise dos anos 70, vitoriosa na Inglaterra e em todo mundo. O epicentro da crise foi nos EUA, e as principais decisões que mudaram o rumo da história da segunda metade do século passado, também foram tomadas nos EUA. Algumas delas, muito antes da eleição de Margareth Thatcher. No campo acadêmico e político, a inflexão neoliberal começou nos anos 60, durante o primeiro governo Nixon, e o mesmo aconteceu no campo diplomático e militar. Os principais responsáveis pela política econômica internacional do governo Nixon - como George Shultz, William Simon e Paul Volcker – já defendiam, naquela época, o abandono americano da paridade cambial do Sistema de Bretton Woods, a abertura dos mercados e a livre circulação dos capitais. E todos tinham como objetivo estratégico o restabelecimento do poder mundial das finanças e da moeda norte-americana, ameaçados pelos déficits comerciais, e pela pressão sobre as reservas em ouro dos EUA, que aumentaram na segunda metade da década de 60.

Mais tarde, depois do fim do “padrão-dolar”, em 1973, e dos primeiros passos da desregulação do mercado financeiro americano, em 1974, ainda no governo democrata de Jimmy Carter, foi Paul Volcker e sua estratégia de estabilização do dólar, de 1979, que foi o verdadeiro turning point monetarista da política econômica norte-americana. Antes da vitória republicana de 1980, e da transformação de Ronald Ragan, em ícone da reação conservadora nos Estados Unidos. Na própria Inglaterra, a “virada neoclássica” da política econômica começou antes da eleição da senhora Thatcher, durante o governo do primeiro ministro James Callaghan, depois da crise cambial de 1976.

Naquele momento, o governo trabalhista se dividiu entre os que defendiam uma “estratégia alternativa” de radicalização das políticas de controle, de viés keynesiano, liderados por Tony Benn, e a ala vitoriosa, dos que defenderam a ida da Grã Bretanha ao FMI, e a aceitação das políticas ortodoxas e monetaristas exigidas pelo Fundo, como contraparte dos seus empréstimos, aceitas pelo governo Callaghan, em sintonia com o governo social-democrata alemão, de Helmut Schmidt, que já havia “aderido” à mesma ortodoxia, antes do primeiro-ministro conservador, Helmut Koll.

Apesar de tudo isto, não há dúvida que foi a senhora Thatcher que passou para a história como porta-estandarte do neoliberalismo das últimas décadas do século XX. Uma troca ou fusão de cabeças e de papéis permanente, mesmo depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Foi Keynes e não a Harry White, a figura forte na criação do Sistema de Breton Woods; foi Churchill e não Truman , o verdadeiro pai da Guerra Fria; foram os ingleses e não os norte-americanos, que criaram o “euromercado” de dólares – no início da década de 60 - que está na origem da globalização financeira; foi Tony Blair, mais do que Bill Clinton, quem anunciou numa entrevista coletiva, em fevereiro de 1998, a criação da “terceira via” ao mesmo tempo em que defendiam a necessidade de uma Segunda Guerra do Iraque; e o mesmo aconteceu com o anuncio conjunto – em 2000- da solução anglo-saxônica do enigma do genoma humano; e agora de novo - de volta ao campo econômico - foram os ingleses e não os americanos que lideraram a resposta das grandes potências frente à crise financeira, em outubro de 2008. E foi o primeiro ministro britânico, Gordon Brown, e não o presidente Barack Obama, quem anunciou na cidade de Londres, em abril de 2009, o fim do “Consenso de Washington”, apelido que foi dado pelos norte-americanos às políticas da “era Thatcher”. E depois de tudo, o que a imprensa internacional está anunciando é o retorno em todo mundo das idéias do Lord Keynes, e não de Ben Bernank ou Laurence Summers.

Ou seja, mesmo depois do que alguns analistas chamam de “fim da hegemonia britânica”, os ingleses seguem definindo ou anunciando a direção estratégica seguida pelos “povos de língua inglesa”, e pelo mundo em geral. Seja numa direção, ou na outra, porque na verdade as novas políticas preconizadas pelo eixo anglo-saxão, a partir de 2009, também não significam a morte da ideologia econômica liberal, ao contrário do que afirmam muitos analistas da conjuntura atual. Keynes revolucionou a teoria econômica marshalliana, mas era um liberal, e suas propostas de política econômica recuperam, em última instância, algumas teses essenciais do ultra-liberalismo econômico dos Fisiocratas franceses, e do próprio Adam Smith, que defendiam uma intervenção ativa do estado para garantir o funcionamento dos mercados sempre que sua “mão invisível” não conseguisse garantir a demanda efetiva indispensável aos investimentos privados. A crítica ou o entusiasmo apressado, às vezes esquece que existe um parentesco essencial entre as políticas econômicas de filiação neoclássica e keynesiana, que pertencem à mesma família ideológica liberal e anglo-saxônica, e são estratégias complementares e indissociáveis dentro do sistema capitalista, atendendo interesses e funções diferentes mas intercambiáveis, segundo o lugar e o momento da sua implementação. Ou seja: primeiro Keynes, depois Thatcher e de novo Keynes, e a história segue confirmando o que disse o pai da teoria internacional inglesa, Edward Hallet Carr, em 1939: “A idéia de que os povos de língua inglesa monopolizam a moralidade internacional, e a visão de que eles são consumados hipócritas internacionais decorre do fato de que são eles que definem as normas aceitas da virtude internacional, graças a um processo natural e inevitável” . Até o maior crítico alemão do capitalismo inglês escreveu e difundiu suas idéias econômicas, a partir da Inglaterra, através das veias do império britânico. E segue enterrado no cemitério de Highgate, na cidade de Londres.


José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Marx, as crises e a "desregulação financeira"

Fonte:http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15992


Marx, as crises e a "desregulação financeira"

A causa das crises econômicas, do ponto de vista marxista, é sempre o excesso de acumulação de capital, que, a partir de determinado momento, não encontra condições de se realizar. Ao permitir a queima de capital, as crises liberam espaço para a continuidade do processo de acumulação. Há quase três décadas, porém, o capitalismo vem sendo comandado pelo lado financeiro, e isso introduziu mudanças significativas na forma de operar do sistema. O artigo é da economista Leda Paulani, o terceiro da série "Marxismo e Século XXI", organizada pela Carta Maior, com curadoria de Chico de Oliveira.

Leda Paulani

No terceiro texto da Série ‘Marxismo e Século XXI” - seminário virtual organizado por Carta Maior, com curadoria do sociólogo Chico de Oliveira - a economista Leda Paulani aborda a conceituação das crises cíclicas do capitalismo. Ela explica que Marx enxerga nas crises uma característica definidora do capitalismo, o modo pelo qual o sistema funciona, não o modo pelo qual ele falha. A causa das crises, do ponto de vista marxista, é sempre o excesso de acumulação de capital, que, a partir de determinado momento, não encontra condições de se realizar. Ao permitir a queima de capital, as crises liberam espaço para a continuidade do processo de acumulação. Há quase três décadas, porém, o capitalismo vem sendo comandado pelo lado financeiro, e isso introduziu mudanças significativas na forma de operar do sistema. Leia o artigo de Leda Paulani.

Em artigo de seu clássico livro The Wordly Philosophers, Robert Heilbroner afirma que, conforme Marx, as crises servem para renovar a capacidade de expansão do sistema, sendo assim o modo pelo qual ele funciona, não o modo pelo qual ele falha. Não há forma mais concisa para expressar o que pensava o profeta mouro desses fenômenos.

Bem ao contrário do que postula a economia convencional, para a qual o estado normal da economia capitalista é a harmonia e o equilíbrio, sendo as crises momentos incomuns, rapidamente corrigidos se o mercado for deixado em paz, Marx enxerga nesses eventos a característica definidora do capitalismo. Vendo-o como um sistema complexo e dinâmico, movido a contradições, esses episódios são, para ele, tão naturais quanto necessários.

Na visão de Marx, a crise é o momento em que as contradições se materializam e exigem solução, sob pena de se comprometer a viabilidade do sistema. A causa das crises é sempre o excesso de acumulação de capital, que, a partir de determinado momento, não encontra condições de se realizar. Ao permitir a queima de capital, as crises liberam o espaço para a continuidade do processo de acumulação.


Tanto nos momentos de aceleração e auge quanto nos de desaceleração e crise, o lado produtivo e o lado financeiro operam combinadamente, cabendo ao último um papel multiplicador, pois ele tende a inflar a economia nos momentos de crescimento, tornando mais profundos, por conseqüência, os momentos de crise. Mas o pressuposto aí é que o lado produtivo comande o processo (o que não significa que ele possa por isso ficar imune ao trabalho amplificador que o lado financeiro produz).


Há quase três décadas, porém, o capitalismo vem sendo comandado pelo lado financeiro, e isso introduziu mudanças significativas na forma de operar do sistema. A riqueza financeira, constituída em boa parte por aquilo que Marx denominou capital fictício, cresce exponencialmente, enquanto o crescimento da renda real (PIB) e, por conseguinte, da riqueza real, dá-se de modo muito mais lento.

Com isso, o sistema fica estruturalmente frágil, dado que o caráter rentista da propriedade do capital se choca com o desenvolvimento vagaroso da produção de valor excedente. As pressões que se exercem sobre o setor produtivo são por isso enormes, justificando toda sorte de barbarismos e retrocessos na relação capital-trabalho. Ademais, o sistema fica muito mais exposto às crises provocadas pelos movimentos dos estoques de riqueza (ativos), que caracterizam o lado financeiro do sistema.

Dos anos 1980 para cá, o capitalismo já experimentou pelo menos cinco grandes crises, contando a maior delas, esta que ora presenciamos. Todas essas conturbações foram provocadas pela intensa mobilidade do capital financeiro planeta afora, com a recorrente formação e estouro de bolhas de ativos. A forma de “resolver” essas crises tem jogado para frente, de forma magnificada, o mesmo problema, pois busca salvar a riqueza financeira da fogueira que ela mesma provoca.

(*) Leda Paulani é professora titular do Departamento de Economia da FEA/USP

quarta-feira, 27 de maio de 2009

A política econômica Keynesiana

Como um período de crescimento econômico extraordinário, pleno emprego e altos lucros pode levar uma nação a crise? A primeira vista parece até contraditório, mas a grande depressão que assolou os Estados Unidos em 1929 foi precedida por uma era áurea, industrias produzindo a todo vapor e consumidores comprando e zerando estoques.
A crise dos Estados Unidos foi acima de tudo uma crise do capitalismo. Foi sobre este sistema que Jhon Maynard Keynes se debruçou para depois criar a sua Teoria Geral. Keynes analisou o capitalismo e seus modos de produção e distribuição de renda, levantando as razões que levaram o sistema ao colapso.
Em seus estudos Keynes concluiu que o sistema trabalha com o que chamou de fluxo circular - o dinheiro flui das empresas para o público sob a forma de salários, remunerações, rendas, juros e lucros e depois volta para a empresa quando o público compra bens e serviços oferecidos por ela. Mas o problema é que o público acaba não retornando todo o dinheiro recebido para a empresa. Keynes classifica esse não retorno de vazamento. O dinheiro vaza para outro lugar e não retorna à empresa, de certa forma “quebra o ciclo”.
Mas se o dinheiro não é usado para comprar mais bens e serviços é usado para que? Keynes apontou três destinos:

1. O público muitas vezes não gasta todo o dinheiro que recebe e guarda parte de sua renda na poupança.
2. Quando o público compra bens e serviços de empresas estrangeiras deixa de gastar esta quantia com produtos internos (produzidos no interior do país).
3. O público também usa parte desta renda para pagar impostos.

Keynes propôs também três possíveis soluções para sanar esses vazamentos. Segundo ele, no caso do dinheiro gasto com empresas estrangeiras, as importações poderiam ser compensadas pelas exportações. No que diz respeito aos impostos, o governo poderia utilizar os impostos pagos pelo público para financiar a aquisição de bens e serviços. Já com relação à questão da poupança, sempre que os empresários desejassem ampliar seu capital, deveriam financiar os investimentos em bens de capital contraindo empréstimos nos bancos onde estivessem depositadas as poupanças do público. Com estas três ações o economista acreditava que o sistema iria ficar equilibrado e a crise não aconteceria, o problema é que considerava que o processo não funcionária por muito tempo.
A política proposta por Keynes prevê grande intervenção por parte do governo, na forma de investimentos. O governo precisa investir para fazer o dinheiro circular, mas investir em que? O desejável seria que ele pudesse despender este dinheiro na construção de escolas, hospitais, parques e outras obras que favoreceriam principalmente a população de baixa renda. Mas como tanto o poder econômico quanto o poder político estão nas mãos de uma minoria rica, uma política de governo que privilegiasse quase que completamente os mais pobres não funcionaria.
Em que investir então? A solução veio de graça. Com a eclosão da II Guerra mundial, os Estados Unidos investiu bilhões em armas de guerra, militares e alimentos e vestimentas para esses militares. A economia se reativou e a ideologia de Keynes se firmou.

terça-feira, 26 de maio de 2009

O limiar de uma nova era

Rodrigo Borges Delfim

A crise que atinge as economias globais não tem precedentes na história da humanidade. Difere das outras grandes crises capitalistas de 1896, 1929 e 1973. Os modelos aplicados anteriormente para a resolução dessas crises já não funcionam corretamente – a intervenção estatal keynesiana, para a crise de 1929, e a saída monetarista e do livre mercado em 1973. Ambas as fórmulas foram aplicadas para combater os efeitos da crise que explodiu de vez em setembro de 2008, e nenhum delas apresentou resultados que fossem realemente animadores.

É nesse ponto em que Robert Kurz faz em “Perdedores Globais”. É uma análise um tanto quanto apocalíptica, ao afirmar que a ciência política está em crise. Mas os fatos vislumbrados pelo autor já em 1997 (estamos agora em 2009) chegam para endossar a análise de Kurz. O mundo mudou depressa, mas os métodos de avaliação e combate dos problemas que surgem continuam os mesmos. Os Estados são cada vez mais fracos perante às empresas multinacionais, mas são aos primeiros que tais corporações recorrem quando não possuem mais recursos para continuarem existindo – GM, Chrysler, AIG, certos bancos, entre outros tantos exemplos. Quem ajuda quem nesse contexto?

As soluções político-econômicas conhecidas já não empolgam. O neoliberalismo ficou desnudo em sua incompetência e inutilidade; a maioria dos Estados se encontra endividado demais para socorrer suas economias, tendo muitas vezes que recorrer a novos empréstimos – que, por sua vez, tornam-se cada vez mais escassos. E os preceitos de inspiração marxista ficaram maculados pela distorção stalinista que sofreram ao serem implantados nos antigo bloco socialista. Economistas, por exemplo, se sentem como cães que acabaram de cair de um caminhão de mudança, sem saber a quem e o que recorrer, muito menos o que dizer

Não é exagero dizer que todos nós somos os perdedores globais. Até mesmo os grandes capitalistas já sofrem os efeitos desta que é a mais democrática das crises – claro que uns a sentem mais do que outros, mas nenhum setor da economia e da sociedade está passando ileso pela crise global. Mas afinal de contas, o que será daqui para frente?

É como se toda a humanidade estivesse em uma montanha russa e entrasse dentro de um looping gigantesco, radical, onde quase sequer é possível abrir os olhos para ver onde se encontra ao certo. E em seguida desse looping, entram em um túnel escuro como os que são vistos em casas de terror em parques de diversões e onde mal se pode esperar pela hora de enxergar qualquer luz que seja ao final do túnel.

Na verdade, estamos no limiar de uma nova era. Se ela será boa ou ruim, já é uma outra história – e duvido que haja alguém que consiga ter uma resposta minimamente satisfatória para a situação atual e seus desdobramentos.

Medo, incerteza, improvisos, sacrifícios, esgotamento, necessidade de mudança são alguns dos sentimentos que pautam essa época de transição. E somente com uma nova crítica social – que, aliás, ainda precisa ser elaborada – será possível entender e agir de maneira satisfatória perante os novos e ainda desconhecidos desafios que vão surgir.

sábado, 23 de maio de 2009

O beco sem saída

Por Elizabete dos Santos

Em um mundo globalizado, as causas que levam a uma crise econômica podem ser imensuráveis. Vários fatores podem culminar no colapso econômico de um país, a exemplo do que aconteceu na Rússia, no México, no Brasil e, mais recentemente, na Argentina. A estrutura política desses países também tem parcela de culpa no processo da crise, porque é capaz de desenvolver um sentimento de incerteza nos investidores e países parceiros, que, com medo de mudanças no cenário, acabam diminuindo as participações e atravancando os negócios.

Mas na atualidade, a constituição de nação se tornou fictícia. A noção de Estado soberano foi desaparecendo com o tempo e com o fortalecimento da globalização. É por isso que, com economias tão dependentes umas das outras, configura-se uma crise econômica mundial, na qual todos os países estão envolvidos, uns mais, outros menos, claro, mas sempre com perdas que podem ser incalculáveis.

Segundo Roberto Kurz, a ciência econômica encontra-se numa profunda crise. Crise que existe porque a economia nacional foi substituída pela globalizada, mas tanto a política quanto a ciência econômica permaneceram atreladas a seus velhos conceitos e teorias.

O cenário mudou de forma drástica quando a exportação de mercadorias foi incrementada pela exportação do capital. Investe-se em todo o globo, mas o capital deixa de integrar o estoque nacional. Ele se internacionalizou e não visa mais o desenvolvimento do país como um todo, apenas o lucro dos proprietários das multinacionais.

Estamos num beco sem saída. O Estado que, em tese, deve prezar pela vida digna de sua população, não pode interferir no mercado nem assegurar os direitos dos trabalhadores, porque, se o fizer, perderá capital das empresas. Restrito às fronteiras territoriais e políticas, o Estado ainda precisa atrair capital com a redução de impostos, mão de obra barata e outras regalias e com isso, como diz Kurz, é cada vez menos o “capitalista ideal”. É neste sentido que as empresas procuram “produzir onde os salários são baixos, pesquisar onde as leis são generosas e auferir lucros onde os impostos são menores”.

Na verdade o mercado mundial devassou estranhamente da economia nacional, a exportação de mercadorias foi incrementada pela exportação do capital. No meu ponto de vista, não se trata de exportação ou importação de bens e consumo ou investimentos entre diversas economias nacionais, mas de uma nova divisão de trabalho dentro das próprias empresas multinacionais, a repartição das funções produtivas não se acha mais concentradas num único lugar, mas difunde por vários países e continentes.

O mercado consumidor também teve de expandir por todo o mundo, pois quanto maiores os investimentos e lucro em tecnologia avançada e quanto maior é racionalização, e maior é o desemprego e tanto menor o valor da força de trabalho e do poder de compra nacional. Zonas de livre comerciam como a comunidade européia ou o mercosul, só tendem a gravar o problema, pois geralmente, aceleram a desintegração da economia nacional e promovem a união multinacional de pequenos países de desenvolvimentos.

Quem paga a conta?

“Produzir onde os salários são baixos, pesquisar onde as leis são generosas e auferir lucros onde os impostos são menores”. Eis a lei do capitalismo mundializado, conforme destaca Robert Kurz em “Perdedores globais”, texto em que esmiúça as mudanças estruturais da economia diante da globalização dos mercados, do dinheiro e do trabalho.

A lógica que rege o comportamento empresarial, de tão empregada e disseminada, parece ter sido naturalizada aos olhos da sociedade. A busca desenfreada pelo lucro é vista como uma atividade intrínseca ao sistema capitalista, uma necessidade natural das corporações.

De fato, a lógica capitalista se baseia na “mais-valia”, como descreveu Marx. O caminho percorrido para tal, no entanto, precisa ser levado em conta. É preciso considerar que, em todas as suas etapas, esse sistema interage com o mundo real, pois ele não acontece numa página em branco. Ele se choca os limites dos recursos naturais e com as necessidades das pessoas.
Assim, como nos mostra o autor, na matemática dos lucros do capitalismo globalizado, a população das nações é quem paga a conta.
As conseqüências, ao contrário do que pregam os defensores do capital e os relatórios de responsabilidade corporativa, não significam “expansão dos avanços tecnológicos” ou “desenvolvimento da comunidade local”. As implicações são muito mais nefastas.

Só para citar alguns exemplos, no início de maio a Procuradoria Geral de Nova York divulgou um relatório sobre os impactos causados pela exploração de petróleo na Amazônia equatoriana pela empresa Chevron (antiga Texaco). Segundo o documento, a dívida social e ambiental da petrolífera com o Equador ultrapassa US$ 27 bilhões, acumulados em 30 anos de atuação no país — período em que assumiu práticas irregulares a fim de reduzir seus custos de produção.

Já no ano passado, aproveitando a ocasião dos Jogos Olímpicos de Pequim, a campanha internacional Play Fair — encampada por ONGs e sindicatos de todo o mundo — denunciou a exploração de trabalhadores nas periferias do globo na confecção de artigos de gigantes esportivas, como Nike, Adiddas, Puma etc. O salário de um mês inteiro de um operário da China, por exemplo, não compra um tênis da Nike que ele mesmo confeccionou em seu preço de mercado.

Outros casos semelhantes de exploração trabalhista e de danos ambientais não faltam, mas esses dois são exemplares das práticas das corporações globais.
Para além do ataque às empresas em si, o que essas denúncias deixam claro é que com a redução da regulação do Estado, o poder das corporações inflou a níveis absurdos. Afinal, como explicar que esse tipo de exploração depredatória ocorre sem que ninguém faça nada?

Com a coordenada ação de lobby, aliado à diminuição do poder regulador, as empresas assumem o posto de governo, pois conseguem a manutenção de políticas a elas favoráveis — e não à população.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

O capitalismo tentou romper seus limites históricos e criou um novo 1929, ou pior

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15284&editoria_id=7

ESPECIAL - FRANÇOIS CHESNAIS

O capitalismo tentou romper seus limites históricos e criou um novo 1929, ou pior
"Não quero parecer um pastor com a sua Bíblia marxista, mas quero ler uma passagem de O Capital: o verdadeiro limite da produção capitalista é o próprio capital; é o fato de que, nela, são o capital e a sua própria valorização que constituem o ponto de partida e a meta, o motivo e o fim da produção. O meio empregado - desenvolvimento incondicional das forças sociais produtivas - choca constantemente com o fim perseguido, que é um fim limitado: a valorização do capital existente". Leia a íntegra da palestra do economista francês François Chesnais feita em setembro, em Buenos Aires.

François Chesnais* - Esquerda.Net

Nesta apresentação feita em 18 de Setembro em Buenos Aires, o economista marxista francês François Chesnais expõe a forma como o capitalismo, na sua longa fase de expansão, tentou superar os seus limites imanentes. E como todas essas tentativas contribuíram para criar agora uma crise muito maior. Comparável à de 1929, mas que ocorre num contexto totalmente novo.

A tese que vou apresentar defende que no ano passado produziu-se uma verdadeira ruptura, que deixa para trás uma longa fase de expansão da economia capitalista mundial; e que essa ruptura marca o início de um processo de crise com características que são comparáveis à crise de 1929, ainda que venha a desenvolver-se num contexto muito diferente.

A primeira coisa que é preciso recordar é que a crise de 1929 se desenvolveu como um processo: um processo que começou em 1929, mas cujo ponto culminante se deu bastante depois, em 1933, e que logo abriu caminho a uma longa fase de recessão. Digo isto para sublinhar que, na minha opinião, estamos a viver as primeiras etapas, mas realmente as primeiras, primeiríssimas etapas de um processo dessa amplitude e dessa temporalidade. E que o que nestes dias está acontecendo e tem como cenário os mercados financeiros de Nova York, de Londres e de outros grandes centros bolsistas, é somente um aspecto - e talvez não seja o aspecto mais importante - do que se deve interpretar como um processo histórico.

Estamos diante de um desses momentos em que a crise vem exprimir os limites históricos do sistema capitalista. Não se trata de alguma versão da teoria da "crise final" do capitalismo, ou algo do estilo. Do que sim se trata, na minha opinião, é de entender que estamos confrontados com uma situação em que se exprimem estes limites históricos da produção capitalista. Não quero parecer um pastor com a sua Bíblia marxista, mas quero ler-vos uma passagem de O Capital:

"O verdadeiro limite da produção capitalista é o próprio capital; é o fato de que, nela, são o capital e a sua própria valorização que constituem o ponto de partida e a meta, o motivo e o fim da produção; o fato de que aqui a produção é só produção para o capital e, inversamente, não são os meios de produção simples meios para ampliar cada vez mais a estrutura do processo de vida da sociedade dos produtores. Daí que os limites dentro dos quais tem de mover-se a conservação e a valorização do valor-capital, a qual descansa na expropriação e na depauperção das grandes massas de produtores, choquem constantemente com os métodos de produção que o capital se vê obrigado a empregar para conseguir os seus fins e que tendem para o aumento ilimitado da produção, para a produção pela própria produção, para o desenvolvimento incondicional das forças produtivas do trabalho. O meio empregado - desenvolvimento incondicional das forças sociais produtivas - choca constantemente com o fim perseguido, que é um fim limitado: a valorização do capital existente. Por conseguinte, se o regime capitalista de produção constitui um meio histórico para desenvolver a capacidade produtiva material e criar o mercado mundial correspondente, envolve ao mesmo tempo uma contradição constante entre esta missão histórica e as condições sociais de produção próprias deste regime. (1)

Bom, certamente que há algumas palavras que hoje já não utilizamos, como "missão histórica"... Mas creio que o que vamos ver nos próximos anos vai dar-se precisamente na base de já ter sido criado em toda a sua plenitude esse mercado mundial intuído por Marx. Quer dizer, temos um mercado e uma situação mundial diferentes da de 1929, porque nessa altura países como a China e a Índia eram ainda semi-coloniais, enquanto que agora já não têm esse caráter; são grandes países que, mais além de terem um caráter combinado que requer uma análise cuidadosa, são agora participantes de pleno direito dentro de uma economia mundial única, uma economia mundial unificada num grau desconhecido até esta etapa da história. A citação pode ajudar-nos a entender o momento atual, e a crise que se iniciou precisamente neste marco de um só mundo.

Um novo tipo de crise

Na minha opinião, nesta nova etapa, a crise vai desenvolver-se de tal modo que as primeiras e realmente brutais manifestações da crise climática mundial vão combinar-se com a crise do capital enquanto tal. Entramos numa fase em que se coloca realmente uma crise da humanidade, dentro de complexas relações nas quais se incluem também os acontecimentos bélicos, mas o mais importante é que, mesmo excluindo a explosão de uma guerra de grande amplitude que, no presente momento, só podia ser uma guerra atómica, estamos confrontados com um novo tipo de crise, com uma combinação desta crise econômica, que começou, com uma situação na qual a natureza, tratada sem a menor contemplação e atacada pelo homem no marco do capitalismo, reage agora de forma brutal. Isto é uma coisa quase excluída das nossas discussões, mas que vai impor-se como um fato central.

Por exemplo, muito recentemente, lendo o trabalho de um sociólogo francês, fiquei a saber que os glaciares andinos dos quais flui a água com que se abastecem La Paz e El Alto estão esgotados em mais de 80%, e estima-se que dentro de 15 anos La Paz e El Alto não vão ter água... e, no entanto, isto é algo que nunca foi tratado, nunca se discutiu um fato de tamanha magnitude que pode fazer com que a luta de classes na Bolívia, tal como a conhecemos, mude substancialmente - por exemplo fazendo com que a tal controversa mudança da capital para Sucre se imponha como uma coisa "natural", porque acabou a água em La Paz.

Estamos entrando num período desse tipo e o problema é que quase não se fala disso, enquanto que nos ambientes revolucionários continuam a discutir-se coisas que neste momento são minúcias, questões completamente mesquinhas em comparação com os desafios que temos pela frente.

Limites imanentes do capitalismo

Para continuar com a questão dos limites do capitalismo, quero chamar a atenção para uma citação de Marx, imediatamente anterior à já citada: "A produção capitalista aspira constantemente a superar estes limites imanentes a ela, mas só pode superá-los recorrendo a meios que voltam a levantar diante dela estes mesmo limites, e ainda com mais força". (2) Esta indicação introduz-nos a análise e a discussão dos meios a que se recorreu, durante os últimos 30 anos, para superar os limites imanentes do capital.

Esses meios foram, em primeiro lugar, todo o processo de liberalização das finanças, do comércio e do investimento, todo o processo de destruição das relações políticas surgidas na raíz da crise de 29 e dos anos 30, depois da Segunda Guerra Mundial e das guerras de libertação nacional... Todas essas relações, que exprimiam o domínio do capital mas representavam ao mesmo tempo formas de controle parcial do mesmo capital, foram destroçadas e, por algum tempo, pareceu ao capital que com isto ficavam superados os limites postos à sua atuação.

A segunda forma que se escolheu para superar esses limites imanentes do capital foi recorrer, numa escala sem precedentes, à criação de capital fictício e de meios de crédito para ampliar uma procura insuficiente no centro do sistema.

E a terceira forma, a mais importante historicamente para o capital, foi a reincorporação, enquanto elementos plenos do sistema capitalista mundial, da União Soviética e seus "satélites", e da China.

Só no marco das resultantes destes três processos é possível captar a amplitude e a novidade da crise que se inicia.

Liberalização, mercado mundial, competição... Comecemos por nos interrogar sobre o que significou a liberalização e a desregulação levadas a cabo à escala mundial, com a incorporação do antigo "campo" soviético e a incorporação e a modificação das relações de produção na China... O processo de liberalização e desregulação significou o desmantelamento dos poucos elementos reguladores que se tinham construído no marco internacional ao sair da Segunda Guerra Mundial, para entrar num capitalismo totalmente desregulamentado. E não só desregulamentado, como também um capitalismo que criou realmente o mercado mundial no pleno sentido do termo, convertendo em realidade o que era em Marx uma intuição ou antecipação. Pode ser útil precisar o conceito de mercado mundial e ir talvez mais além da palavra mercado.

Trata-se da criação de um espaço livre de restrições para as operações do capital, para produzir e realizar mais-valias, tomando este espaço como base e processo de centralização de lucros à escala verdadeiramente internacional. Esse espaço aberto, não homogêneo mas com uma redução drástica de todos os obstáculos à mobilidade do capital, essa possibilidade para o capital de organizar à escala universal o ciclo de valorização, está acompanhado de uma situação que permite pôr em competição entre si os trabalhadores de todos os países. Quer dizer, sustenta-se no fato de o exército industrial de reserva ser realmente mundial e de ser o capital como um todo que rege os fluxos de integração ou de repulsão, nas formas estudadas por Marx.

Este é então o marco geral de um processo de "produção para a produção" em condições em que a possibilidade de a humanidade e as massas do mundo acederem a essa produção é totalmente limitada... e, portanto, torna-se cada vez mais difícil o encerramento com êxito do ciclo de valorização do capital, para o capital no seu conjunto, e para cada capital em particular. E por isso se ampliam e se fazem mais determinantes no mercado mundial "as leis cegas da competição". Os bancos centrais e os governos podem proclamar que vão pôr-se de acordo entre si e colaborar para impedir a crise, mas não creio que se possa introduzir a cooperação no espaço mundial convertido em cenário de uma tremenda competição entre capitais.

E agora, a competição entre capitais vai muito mais além das relações entre os capitais das partes mais antigas e mais desenvolvidas do sistema mundial, com os sectores menos desenvolvidos do ponto de vista capitalista. Porque sob formas particulares e inclusive muito parasitárias, no marco mundial deram-se processos de centralização do capital por fora do marco tradicional dos centros imperialistas: em relação com eles, mas em condições que também introduzem algo totalmente novo no marco mundial.

Durante os últimos 15 anos, e em particular durante a última etapa, desenvolveram-se, em determinados pontos do sistema, grupos industriais capazes de integrar-se como sócios de pleno direito nos oligopólios mundiais. Tanto na Índia como na China constituíram-se verdadeiros e fortes grupos econômicos capitalistas. E, no plano financeiro, como expressão do rentismo e do parasitismo puro, os chamados Fundos Soberanos converteram-se em importantes pontos de centralização do capital sob a forma de dinheiro, que não são meros satélites dos Estados Unidos, têm estratégias e dinâmicas próprias e modificam de muitas maneiras as relações geopolíticas dos pontos-chave em que a vida do capital se faz e fará.

Por isso, outro elemento a ter em conta é que esta crise tem como outra de suas dimensões a de marcar o fim da etapa em que os Estados Unidos podiam atuar como potência mundial sem comparação... Na minha opinião, saímos do momento que analisava Mészáros no seu livro de 2001, e os Estados Unidos vão ser submetidos a uma prova: num prazo muito curto, todas as suas relações mundiais modificaram-se e terão, no melhor dos casos, de renegociar e reordenar todas as suas relações com base no facto de que têm de partilhar o poder. E isto, evidentemente, é algo que nunca aconteceu de forma pacífica na história do capital...

Então, primeiro elemento: um dos métodos escolhidos pelo capital para superar os seus limites transformou-se em fonte de novas tensões, conflitos e contradições, indicando que uma nova etapa histórica vai abrir caminho através desta crise.

Criação descontrolada de capital fictício

O segundo meio utilizado para superar os limites do capital das economias centrais foi que todas elas recorreram à criação de formas totalmente artificiais de ampliação da procura efectiva, as quais, somando-se a outras formas de criação de capital fictício, geraram as condições para a crise financeira que se desenvolve hoje. No artigo que os companheiros de Herramienta tiveram a gentileza de traduzir para o espanhol e publicar, abordei com alguma profundidade esta questão do capital fictício e as novas formas que se deram dentro do próprio processo de acumulação do capital fictício.

Para Marx, o capital fictício é a acumulação de títulos que são "sombra de investimentos" já feitos mas que, como títulos de bônus e de ações, aparecem com o aspecto de capital aos seus detentores. Não o são para o sistema como um todo, para o processo de acumulação, mas são-no sim para os seus detentores e, em condições normais de fechamento de processos de valorização do capital, rendem aos seus detentores dividendos e juros. Mas o seu caráter fictício revela-se em situações de crise. Quando ocorrem crises de sobreprodução, falência de empresas, etc., descobre-se que esse capital não existia...

Por isso também pode ler-se às vezes nos jornais que tal ou qual quantidade de capital "desapareceu" nalgum tropeço bolsista: essas quantias nunca tinham existido como capital propriamente dito, apesar de, para os detentores dessas ações, representarem títulos que davam direito a dividendos e juros, a receber lucros...

Evidentemente, um dos grandes problemas de hoje é que, em muitíssimos países, os sistemas de aposentadoria estão baseados em capital fictício, com pretensões de participação nos resultados de uma produção capitalista que pode desaparecer em momentos de crise. Toda a etapa de liberalização e de globalização financeira dos anos 80 e 90 esteve baseada em acumulação de capital fictício, sobretudo em mãos de fundos de investimento, fundos de pensões, fundos financeiros... E a grande novidade desde finais ou meados dos anos 90 e ao largo dos anos 2000 foi, nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha em particular, o impulso extraordinário que se deu à criação de capital fictício na forma de crédito.

De crédito a empresas, mas também e sobretudo de créditos às famílias, crédito ao consumo e sobretudo créditos hipotecários. E isso fez dar um salto na massa de capital fictício criado, dando origem a formas ainda mais agudas de vulnerabilidade e de fragilidade, inclusive diante de choques menores, inclusive diante de episódios absolutamente previsíveis. Por exemplo, com base em tudo estudado anteriormente, sabia-se que um boom imobiliário acaba; que inexoravelmente chega um momento em que, por processos muito bem estudados, termina; e, se pode até ser relativamente compreensível que no mercado de ações existisse a ilusão de que não havia limites para a alta no preço das acções, com base em toda a história anterior sabia-se que que isso não podia ocorrer no setor imobiliário: quando se trata de edifícios e de casas é inevitável que chegue o momento em que o boom acaba.

Mas colocaram-se em tal situação de dependência, que esse acontecimento completamente normal e previsível transformou-se numa crise tremenda. Porque a tudo o que já disse, juntou-se o fato de que durante os dois últimos anos os empréstimos eram feitos a famílias que não tinham a menor possibilidade de pagar. Além disso, tudo isso se combinou com as novas "técnicas" financeiras, permitindo-se assim que os bancos vendessem bônus em condições tais que ninguém podia saber exatamente o que estava a comprar... até a explosão dos subprime em 2007.

Agora estão desmontando este processo. Mas dentro dessa desmontagem, há processos de concentração do capital financeiro. Quando o Bank Of America compra o Merrill Lynch, estamos diante de um processo de concentração clássico. E vemos além disso estes processos de estatização das dívidas, que implicam na criação imediata de mais capital fictício. O Federal Reserve dos Estados Unidos cria mais capital fictício para manter a ilusão de um valor do capital que está à beira de desmoronar, com a perspectiva de ter, em algum momento dado, a possibilidade de aumentar fortemente a pressão fiscal, mas na realidade não pode fazê-lo porque isso significaria o congelamento do mercado interno e a aceleração da crise enquanto crise real.

Assistimos, pois, a uma fuga em frente que não resolve nada. Dentro desse processo existe também o avanço dos Fundos Soberanos, que procuram modificar a repartição intercapitalista dos fluxos financeiros a favor dos sectores rentistas que acumularam estes fundos. E isto é um fator de perturbação ainda maior no processo.

Quero recordar, para terminar este ponto, que esse déficit comercial de cinco pontos do PIB é o que confere aos Estados Unidos a particularidade desse lugar-chave para a concretização do ciclo do capital no momento da realização da mais-valia, para o processo capitalista no seu conjunto.

Confrontados agora com uma quase inevitável retração econômica, coloca-se como a grande interrogação se, num curto prazo, a procura interna chinesa poderá passar a ser o lugar que garanta esse momento de realização da mais-valia que se dava nos Estados Unidos. A amplitude da intervenção do Tesouro é muito forte e conseguiu que a contração da atividade nos EUA e a queda das importações tenha sido até agora muito limitada. O problema é saber quanto tempo se poderá ter como único método de política econômica criar mais e mais liquidez... Será possível que não haja limites à criação de capital fictício sob a forma de liquidez para manter o valor do capital fictício já existente? Parece-me uma hipótese demasiado otimista, e entre os próprios economistas norte-americanos, muitos duvidam.

Super-acumulação na China?

Para terminar, chegamos à terceira maneira pela qual o capital superou os seus limites imanentes, que é definitivamente a mais importante de todas e levanta as interrogações mais interessantes. Refiro-me à extensão, em particular para a China, de todo o sistema de relações sociais de produção do capitalismo. Algo que Marx mencionou nalgum momento como possibilidade, mas que só se fez realidade durante os últimos anos. E realizou-se em condições que multiplicam os fatores de crise.

A acumulação do capital na China fez-se com base em processos internos, mas também com base em algo que está perfeitamente documentado, mas pouco comentado: a transferência de uma parte importantíssima do Setor II da economia, o setor da produção de meios de consumo, dos Estados Unidos para a China. E isto tem muito a ver com o grosso dos déficits norte-americanos (o déficit comercial e o fiscal), que só poderiam reverter-se por meio de uma "reindustrialização" dos Estados Unidos.

Isto significa que se estabeleceram novas relações entre os Estados Unidos e a China. Já não são as relações de uma potência imperialista com um espaço semicolonial. Os Estados Unidos criaram relações de um novo tipo, que agora têm dificuldades de reconhecer e de assumir. Com base no superávit comercial, a China acumula milhões e milhões de dólares, que logo empresta aos Estados Unidos. Temos uma ilustração das consequências que isto traz com a nacionalização dessas duas entidades chamadas Fannie Mae e Freddy Mac: ao que parece, a banca da China tinha 15% dos fundos dessas duas entidades e comunicou ao governo americano que não aceitaria a sua desvalorização. São relações internacionais de tipo completamente novo.

Mas que ocorre no seio da própria China? É a questão mais decisiva para a próxima etapa da crise. Na China deu-se internamente um processo de competição entre capitais, que se combinou com processos de competição entre sectores do aparelho político chinês, e de competição para atrair empresas estrangeiras; tudo isso resultou num processo de criação de imensas capacidades de produção, além de violentar a natureza numa escala enorme: na China concentra-se uma super-acumulação de capital que num momento dado se tornará insustentável.

Na Europa, é evidente a tendência a uma aceleração da destruição de capacidades produtivas e de postos de trabalho, para transferir-se para o único paraíso do mundo capitalista que é a China. Considero que esta transferência de capitais para a China significou uma reversão de processos anteriores de uma alta da composição orgânica do capital. A acumulação é intensiva em meios de produção e é intensiva e muito delapidadora da outra parte do capital constante, quer dizer, das matérias primas. A maciça criação de capacidades de produção no Setor I foi acompanhada por todos os mecanismos e o impulso que caracterizam o crescimento da China, mas o mercado final para sustentar toda essa produção é o mercado mundial, e uma retração deste colocará em evidência essa super-acumulação do capital.

Alguém como Aglietta, que estudou isto especificamente, afirma que realmente há super-acumulação, há um processo acelerado de criação produtiva na China, um processo que, no momento em que terminar - e tem de terminar - a realização de toda essa produção vai levantar problemas. Além disso, a China é realmente um lugar decisivo, porque até pequenas variações na sua economia determinam a conjuntura de muitos outros países no mundo. Foi suficiente que a procura chinesa por bens de investimento caísse um pouco, para que a Alemanha perdesse exportações e entrasse em recessão. As "pequenas oscilações" na China têm repercussões fortíssimas noutros lugares, como deveria ser evidente no caso da Argentina.

Para continuar a pensar e a discutir

E regresso ao que disse no início. Ainda que sejam comparáveis, as fases desta crise serão diferentes das de 29, porque naquela época a crise de superprodução dos Estados Unidos verificou-se desde os primeiros momentos. Depois aprofundou-se, mas soube-se de imediato que se estava diante de uma crise de superpodução. Agora, em contrapartida, estão adiando esse momento com diversas políticas, mas não vão poder fazê-lo muito mais.

Simultaneamente, e como ocorreu também na crise de 29 e nos anos 30, ainda que em condições e sob formas diferentes, a crise combinar-se-á com a necessidade, para o capitalismo, de uma reorganização total da expressão das suas relações de forças econômicas no marco mundial, marcando o momento no qual os Estados Unidos verão que a sua superioridade militar é somente um elemento, e um elemento bastante subordinado, para renegociar as suas relações com a China e outras partes do mundo. Ou vai chegar o momento no qual dará o salto para uma aventura militar de consequência imprevisíveis.

Por tudo isto, concluo que vivemos muito mais que uma crise financeira, mesmo estando agora nessa fase. Estamos diante de uma crise muitíssimo mais ampla. Ora bem, tenho a impressão, pelo tom das diferentes perguntas e observações que me fizeram, que muitos são da opinião que estou a pintar um cenário de tipo catastrofista, de desmoronamento do capitalismo... Na realidade, creio que estamos diante do risco de uma catástrofe, mas já não do capitalismo, e sim de uma catástrofe da humanidade. De certa forma, se tomarmos em conta a crise climática, possivelmente já existe algo assim...

A minha opinião (junto com Mészáros, por exemplo, mas somos muito poucos os que damos importância a isto) é que estamos diante de um perigo iminente. O dramático é que, de momento, isto afeta diretamente populações que não são levadas em conta: o que está ocorrendo no Haiti parece que não tem a menor importância histórica; o que acontece em Bangladesh não tem peso mais além da região afetada; muito menos o que acontece na Birmânia, porque o controle da Junta militar impede que ultrapasse as suas fronteiras. E o mesmo na China: discutem-se os índices de crescimento, mas não as catástrofes ambientais, porque o aparelho repressivo controla as informações sobre as mesmas.

E o pior é que essa "opinião", que é constantemente construída pelos meios de comunicação, está interiorizada muito profundamente, inclusive em muitos intelectuais de esquerda. Tinha começado a trabalhar e a escrever sobre tudo isto, mas com o começo desta crise, de alguma forma tive de voltar a ocupar-me das finanças, ainda que não o faça com muito gosto, porque o essencial parece-me que se joga num plano diferente.

Para terminar: o fato de que tudo isto ocorre depois desta fase tão larga, sem paralelo na história do capitalismo, de 50 anos de acumulação ininterrupta (salvo um pequeníssima ruptura em 1974/1975), assim como também tudo o que os círculos capitalistas dirigentes, e em particular os bancos centrais, aprenderam da crise de 29, tudo isso faz com que a crise avance de maneira bastante lenta.

Desde setembro do ano passado, o discurso dos círculos dominantes vem afirmando, uma e outra vez, que "o pior já passou", quando o certo é que, uma e outra vez, "o pior" estava por vir. Mas insisto no risco de minimizar a gravidade da situação, e sugiro que nas nossas análises e na forma de abordar as coisas deveríamos incorporar a possibilidade, no mínimo a possibilidade, de que inadvertidamente estejamos também interiorizando esse discurso de que, definitivamente, "não acontece nada"...

* François Chesnais é economista, faz parte do Conselho Científico do ATTAC-França, é diretor de Carré Rouge e membro do conselho consultivo da revista Herramienta, com a qual colabora assiduamente.

Esta apresentação foi realizada no encontro organizado pela revista argentina "Herramienta" em 18 de Setembro de 2008. A transcrição e preparação para a sua publicação é de Aldo Casas.

Versão publicada no portal Esquerda.Net. Tradução para o português: Luis Leiria (Esquerda.Net)(1) Karl Marx, El capital México, FCE, 1973, Vol. III, pág. 248. (2) Idem. (3) "El fin de un ciclo. Alcance y rumbo de la crisis financiera", en Herramienta Nº 37, marzo 2008.

Uma pletora de capital: a gênese da crise econômica

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15994&boletim_id=555&componente_id=9554


Uma pletora de capital: a gênese da crise econômica
Em entrevista ao jornal argentino Pagina 12, o pesquisador marxista Rolando Astarita defende que a crise não se deu só por causa de um mau funcionamento do mercado financeiro, mas da economia em seu conjunto. "Produziu-se o que Marx chamava “uma pletora de capital”: capital líquido abundante, taxas de juros muito baixas (dirigidos pelo Federal Reserve e pela entrada de capitais que buscavam refúgio nos EUA) e uma super-oferta do crédito. Esses capitais líquidos terminaram no setor da construção, onde encontraram um campo de expansão relativamente rápido. E terminou explodindo".

Natalia Aruguete - Página 12
Diversas posturas econômicas, desde progressistas a heterodoxas, afirmam que estamos numa época de hegemonia do setor financeiro sobre o produtivo e numa hipertrofia do capital especulativo, que deixou a descoberto o estancamento da economia mundial nos últimos 30 anos. Num diálogo com o caderno Cash, suplemente econômico do Página 12, o pesquisador marxista Rolando Astarita assinalou que, na realidade, no último quarto de século houve uma expansão mundial do capitalismo, que a distância entre ricos e pobres não impediu o crescimento dos mercados e que a crise não se deu só por um mal funcionamento do mercado financeiro, mas da economia em seu conjunto. “Há que se pensar o tal do capital fictício com parâmetros; ele não pode nos fazer perder a análise estrutural”, explicou.

Pagina12: Acreditas que a crise financeira marca a queda da ditadura das finanças?Roland Astarita: Não vejo que haja uma ditadura das finanças, mas um domínio do capital em geral, acentuado de maneira muito profunda a partir dos anos 80. No último quarto de século, o disciplinamento do capital sobre as classes trabalhadoras operou através de mecanismos diretos, mas também do mercado, com políticas monetárias duras, aberturas comerciais, flexibilização laboral. Mas não vejo distinção de setores dentro do capital.

P12: No entanto, o crédito e as dívidas cresceram em todo o mundo. Isso pode ter afetado o desenvolvimento da economia real?
RA: Nunca houve desenvolvimento do capitalismo sem desenvolvimento do crédito e de uma monetarização da economia. Na perspectiva de Marx, o crédito é uma alavanca da acumulação de capital. Isto também se vê na fase que vai de 1890 a 1929. Na China, junto à expansão capitalista cresceram seus índices monetários e a participação dos mercados financeiros. Mas o crédito também potencializa as possibilidades de especulação, de sobre-acumulação e de quebradeira. Marx trabalhava com tendências e contra-tendências. Hoje, ao contrário, toma-se só um aspecto da realidade.

P12: Alguns sustentam que o crescimento do crédito prova o estancamento do sistema capitalista.
RA: A idéia de que o sistema capitalista está estancado há 25 anos não resiste à análise da realidade. Nos últimos 30 anos a economia capitalista teve taxas de expansão superiores a 3% em nível mundial, ainda que tenham sido desiguais: o Japão está estancado desde 1992 e a Europa teve um crescimento débil. Houve uma expansão geográfica do sistema capitalista, que entrou na China, no Leste Europe e na Rússia, e um aprofundamento das relações capitalistas. O aumento da produtiviade na economia dos EUA desde 1995 foi maior do que 3% ao ano. O crédito atua como uma potencialização de tendências do sistema e muitas vezes permite que um ciclo econômico se expanda para além de suas possibilidades. Em 2001 os EUA sofreram uma recessão suave. A economia cresceu 0,8% e o crédito lubrificou os mecanismos econômicos. Mas a recuperação de 2002 foi débil, com pouca geração de postos de trabalho e débil recuperação do investimento.

P12: Nesse contexto o crédito migrou para que setores?
RA: Para a construção residencial e para o consumo em geral, não para as empresas. Desde 2000 as empresas dos EUA e do G7 diminuíram sua dependência do sistema financeiro. Houve um excesso de poupança e as empresas diminuíram suas dívidas com os bancos. Inclusive, usaram parte dessa liquidez para recomprar suas ações. Não houve uma grande expansão do investimento produtivo, mas tampouco uma dependência do capital produtivo em relação ao financeiro. As relações de dependência voltaram em meados dos anos 70. Não se pode dizer que fosse uma crise como a diagnosticada a la Hyman Minsky, um autor keynesiano que sustentava que as crises se produzem porque as empresas caem num sobre-endividamento e pagam dívida com dívida até que a situação exploda.

P12: No entanto, houve uma “financeirização dos consumidores”, com a qual se amorteceu a crise de 2001.
RA: E ademais ajudou a recuperação de 2002. Isso é certo. O equivocado é pensar que isso atuou isoladamente. Em 2001, a superabundância de capital líquido e o investimento débil ocorreram porque a taxa de rentabilidade do capital vinha se debilitando desde 1996/7. Esse é o fundo do problema. Produziu-se o que Marx chamava “uma pletora de capital”: capital líquido abundante, taxas de juros muito baixas (dirigidos pelo Federal Reserve e pela entrada de capitais que buscavam refúgio nos EUA) e uma super-oferta do crédito. Esses capitais líquidos terminaram no setor da construção, onde encontraram um campo de expansão relativamente rápido. E terminou explodindo.

P12: Também se diz que, desde os anos setenta, o mundo assiste a uma crise de superprodução combinada com uma crise de subprodução.
RA: Há dois tipos de explicações da crise. Uma diz que o problema da crise deu-se com as finanças. Outra, que a Argentina repete bastante, que se deve a uma importante desigualdade de renda, o que produziu uma crise de consumo por falta de demanda. Creio que isto tampouco explica o que aconteceu. No último quarto de século houve um processo de “proletarização”, enormes massas da população se incorporaram no exército de assalariados. Os casos mais ressonantes são China e Índia. Isso supõe uma ampliação de mercados, enquanto houver crescimento nos lucros. Segundo a The Economist, nos Estados Unidos 0,1% da população ganha 77% vezes mais do que 90% da população restante. Nos anos 70 essa diferença era de 1 para 20. Também na China a desigualdade cresce. Mas não é certo que se a desigualdade cresce, crescem os mercados.

P12: Neste crescimento da economia capitalista, como se compõe o produto bruto no mundo?
RA: No caso dos Estados Unidos, desde a recuperação de 2001 se geraram fenômenos de sobre-acumulação de capital e de queda da taxa de rentabilidade. Esse é o pano de fundo da crise. Sobre isso o fator financeiro atuou, mas também o crescimento desproporcional na construção residencial, entre 2001-2007. Sua participação no PIB passou de 4,2% a mais de 6%. Isso gera tensões, porque um setor está crescendo em taxas muito superiores ao resto, e num contexto em que os investimentos se mantêm débeis. Isso potencializou o sistema de crédito e deu-se uma sobre-expansão do setor em relação às necessidades da economia.

P12: Pegando apenas o setor financeiro, o crescimento da sua participação no PIB dos EUA implicou uma mudança ou uma continuidade em relação a etapas anteriores?
RA: Não me parece que a taxa de crescimento tenha se acelerado desde 1979-80. Entre 1895 e 1929, a taxa de crescimento desse setor nos EUA foi superior a dos últimos vinte anos. Com a crise dos anos 30, o setor financeiro diminuiu sua participação na economia e recuperou terreno desde a década de 50, com um crescimento relativamente constante desde 1960. Não houve uma queda importante nos anos 80, ainda que as taxas de juros tenham aumentando muito: entre 1979 e 1985, o peso dos juros nos balanços empresariais subiu consideravelmente. Isso expressa parte da tese da financeirização, mas não se converteu em algo permanente.

P12: Por que?
RA: Prognosticou-se que iria se produzir uma punção permanente do setor financeiro sobre o lucro empresarial, mediante a taxa de juros. E que isso debilitaria o setor produtivo e levaria ao estancamento. Mas insisto que o peso dos juros sobre o setor produtivo tendeu a baixar. Segundo dados do Official Bureau of Economic Analysis dos Estados Unidos, entre 2006 e princípios de 2007, esse peso estava nos níveis de 1970, que era uma época keynesiana. Penso que esta é uma crise muito grave, muito profunda, mas estamos longe de uma crise como a dos anos 30.


P12: Então acreditas que não há um predomínio do capital fictírico sobre o produtivo, em detrimento da economia real?
RA: Há que se perguntar até que ponto isso é novidade. Quando houve expansão de capital no sistema capitalista, na Bolsa de Valores houve sobrevalorizações. Tradicionalmente, metade disso estaria em 10 anos de price earning (1). No momento de euforia das bolsas, alcançou 20 ou 30 anos. Isso ajuda à instabilidade do sistema capitalista, já que provoca inflação dos lucros que desaparecem da noite para o dia, mas esses lucros não crescem à margem do trabalho produtivo.

P12: Acreditas que a crise atual reflita esse mecanismo?
RA: Aqui estouraram ativos financeiros ligados ao crédito, que se havia sobrevalorizado. O estouro reflete que a economia estava funcionando mal. Há que se pensar o tal do capital ficítcio com parâmetros; ele não deve nos fazer perder a análise estrutural. Ao extrair a mais valia e a realizá-la nos mercados, pode haver inflações que terminam arrebentando. Mas, à medida que a instabilidade se agrava, as crises não se explicam por si mesmas.

P12: Pode estabelecer-se alguma relação entre o excesso de liquidez e a tendência à financeirização da economia?
RA: Esse excesso de liquidez deveu-se à debilidade do investimento produtivo. Em determinado momento, houve setores que super-acumularam. Os neoclássicos interpretaram esse fenômeno como uma decisão das instâncias domésticas, das famílias, quando, na realidade, foi uma debilidade no investimento. Um exemplo é a queda de investimento na Ásia – com exceção da China – depois da crise de 1997-98. Essa massa de capital líquido pressiona sobre o setor financeiro em busca de sua valorização. Mas há que se destacar a relação de causalidade. O crescimento deste setor é consequência da acumulação de capital, ele não opera por fora do conjunto dos problemas dessa acumulação. A interpretação dos neokeynesianos – que hoje são mainstream – é a do acelerador financeiro. Quer dizer, o uso dos ativos financeiros como garantias em empréstimos, até que, em determinado momento, produza-se um choque que se potencializa através do mecanismo financeiro.

P12: E qual a tua opinião sobre esse diagnóstico?
RA: Há aspectos de realidade importantes, mas não analisa a quê se deve o choque, de onde vem. É o próprio sistema de competição capitalista que obriga a um banco a competir com outros para oferecer mais rentabilidades. Se não os ligamos aos problemas de fundo, não entendemos por que essas especulações podem explodir numa brutal crise financeira, que nem sempre afeta a economia. Por exemplo: o crash de Wall Street de 1987 não se tornou uma crise global e foi a segunda grande queda da bolsa dos Estados Unidos.

P12: No encontro do G20 propô-se uma maior regulação dos mercados como forma de sustentar a situação econômica. Crês que essa seria uma solução?
RA: No G20 a regulação dos mercados foi defendida como uma grande questão para depois da crise. Hoje a discussão é até que grau há de se ter intervenção estatal e se medidas protecionistas serão ou não aplicadas. Todo mundo pede que não haja medidas protecionistas mas, no fundo, muitos as aplicam. Sobre isso gostaria de fazer duas reflexões. Os mercados financeiros e capitalistas pressionam para afastar as regulações. As regulações da Basiléia estabeleceram que os bancos deviam ter certa ratio de capital em relação a sua carteira de ativos. Mas os bancos criaram “Sociedades de Propósitos Especiais” (espécie de fideicomisso) para armar suas operações por fora do balanço e, assim, comprar papéis que essas entidades emitiam.

P12: E a segunda reflexão?
RA: Lênin dizia que estavam bem as consignas, mas há que se pensar em quem as aplica. No G20, defendeu-se que o FMI deve retomar o poder de regular. Esse organismo está governado pelas grandes potências, os grandes banqueiros e o capital internacionalizado. Vai responder a esses interesses. É um controle dos altos comandos do capital para evitar desequilíbrios. Não há controles em abstrato.


Publicado no suplemento CASH, do jornal argentino Pagina 12, em 17 de maio de 2009. Para conhecer o trabalho, os interesses e parte das publicações do professor Rolando Astarita, ver a sua página: www.rolandoastarita.com


Tradução: Katarina Peixoto


(1) Ratio Price Earning é um indicador (normalmente designado por P/E ou PER) de análise do valor de uma ação. É a medida estabelecida entre o preço da ação e os lucros das empresas. Quanto mais elevado for o seu valor, mais cara deverá estar a ação e vice-versa. Exemplo: se a Empresa X estiver cotada a € 60 por ação e os seus lucros forem de € 3 por ação, o seu PER é de 20 (60/3). Isto significa que os investidores estão pagando € 20 por cada € 1 de lucros da Empresa X. Esta relação é também conhecida por stock multiple, significando que a Empresa X está a negociar num múltiplo de 20 vezes os seus lucros. Este é um indicador muito utilizado pelos analistas e um dos mais conhecidos dos investidores. Na verdade, é muito frequente ver na imprensa a referência a uma ação como cara ou barata apenas por referência ao PER. Veja-se a estratégia de investimento boas & baratas divulgada pela Revista Carteira, em que um dos critérios para selecção das acções é um PER inferior a 14, dado que este representa aproximadamente a média a nível mundial. Porém, a realidade não é assim tão clara e de simples análise. O PER tem limitações e devem ser conhecidas do investidor, de modo a que não se tomem decisões apenas com base nele.

N.deT. Com http://www.analistafinanceiro.com/fiscal-financeiro/o-price-earnings-ratio-pe-ou-per/

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Keynes e Marx

Artigo originalmente publicado no jornal Folha S. Paulo, em 29 de abril de 2009.
Por Delfim Netto

MARX E KEYNES têm pelo menos três curiosos paralelismos. Primeiro, um bando de fanáticos dogmáticos que pretendem ter o monopólio do entendimento de suas teorias transformaram-se em sacerdotes de suas igrejas. Dizem (e, quando têm poder, fazem!) as maiores barbaridades em nome dos seus deuses, comprometendo as suas memórias. 
Segundo, a relação dos dois com economistas que os precederam envolve um considerável cinismo e a sutil apropriação de ideias que reconhecem muito mal. Os dois foram, obviamente, fatos novos. O problema é que se pretendem sem raízes. 
A relação de Keynes com Marx é das mais ambíguas. As referências a Marx na "Teoria Geral" (1936) ou são inócuas ou depreciativas. Ainda em 1934, ele diz a Bernard Shaw que "meus sentimentos em relação ao "Das Kapital" é o mesmo que tenho em relação ao Alcorão...", reafirmando o que já havia dito em 1925: que não podia aceitar uma doutrina fundada numa "bíblia acima e além de qualquer crítica, um livro-texto obsoleto de economia que eu sei que é cientificamente errado e sem interesse de aplicação no mundo moderno". 
O enigma (o "conundrum", como diria um velho ex-quase "maestro" do Fed que ajudou a meter o mundo na confusão em que se encontra) é que em 1933 Keynes estava elaborando a sua revolucionária Teoria Monetária da Produção. Nela, a moeda produz efeitos reais sobre a produção e o emprego, ao contrário do que supõe, até hoje, a maioria dos economistas, para os quais a moeda é neutra no longo prazo. 
De acordo com notas publicadas por alguns alunos, ele se referia nas aulas ao famoso problema da "realização", isto é, a possibilidade de vender a produção para "realizar" o seu valor em moeda, e dizia que "em Marx há um núcleo de verdade"! 
Chegou a utilizar a conhecida fórmula de Marx em que este havia mudado a ênfase de uma economia de trocas: trocar bens ("commodities" em inglês) por moeda, para comprar bens (C-M-C), para uma economia da produção, onde a moeda compra bens para a produção e esta é vendida por moeda (M-C-M). Esta mudança na forma de ver o mundo é uma das bases da construção keynesiana. 
O terceiro ponto é que a conclusão da obra de ambos não deixa de ser paradoxal e frustrante. Marx comprometeu sua vida estudando o capitalismo e, por isso, não teve tempo de nos ensinar como construir o socialismo; Keynes construiu uma teoria para salvar o capitalismo e terminou com uma receita ("a coordenação estatal dos investimentos para manter o pleno emprego") que não conseguiu explicar como realizar sem levar a alguma forma de socialismo...