domingo, 1 de novembro de 2009

A um clique da origem

Vivemos em tempos de links. O conceito de globalização é baseado no link: as nações estão organizadas em blocos, umas ligadas às outras, não tomam decisões sozinhas, esperam a aprovação de um órgão superior, dito neutro. Entramos em guerra em conjunto, não brigamos com nossos aliados, ainda que eles tenham atitudes, digamos, suspeitas.

Mas como isso já foi muito explorado, vamos tratar da internet e de seu projeto mais ambicioso: o de se tornar uma grande enciclopédia, com tudo que já foi escrito na história da humanidade. Imagine só você, estar a um clique de todo e qualquer documento histórico.

É importante fazer um pequeno retrospecto da origem da enciclopédia. Em O projeto da enciclopédia e seus registros sobre o jornalismo, Antonio Hohlfeldt, citando Danton, resume seu significado: “a obra suprema do Iluminismo [foi] a Enciclopédia de Diderot. (...) A Enciclopédia passou a ser reconhecida, por amigos e inimigos, como a síntese de um grandioso movimento intelectual”.

A Enciclopédia ou dicionário raciocinado de ciência, de artes e de artes mecânicas, por uma sociedade de gente de letras, idealizada por Diderot e D’Alembert, foi realizada com o princípio de se tornar fonte de conhecimento, com uma perspectiva inovadora sobre os princípios de organização social e política defendidos por eles.

Era a primeira vez que se tratava de artes mecânicas em uma obra desse gênero, mostrando a importância que eles davam a elas. Ainda, a gente de letras (intelectuais) estava realizando algo inédito: mapear o conhecimento, que até então vinha das academias, para toda a humanidade.

Voltando ao presente, a primeira grande vantagem que a internet leva em relação às tradicionais enciclopédias no papel é o espaço. No papel, o limite é imposto. A própria origem da enciclopédia mostra que essa foi uma barreira difícil de superar. Originalmente, o projeto teria oito volumes, ao custo de 280 libras, totalizando 1625 cópias. Porém ela atingiu 4255 cópias, com 17 volumes, a um custo de 980 libras.

A memória infinita da rede mundial de computadores é extremamente atraente. Porém, pode torná-la inútil. É o que Olga Pombo coloca em seu texto, Enciclopédia e hipertexto: o projeto: “Sabemos que, do lado da enciclopédia, há limites materiais da extensão, edição, na quantidade e tamanho dos volumes, no número de páginas, na delimitação dos assuntos em função dos critérios de edição. Pelo contrário, no hipertexto não há, pura e simplesmente, qualquer limite de extensão. No entanto, essa condição ilimitada do hipertexto tem como efeito a desorientação, a sobrecarga, a banalização e a indiferenciação dos conteúdos veiculados. É que, na enciclopédia, a exaustividade tem como contraponto a exigência de seletividade, a procura do que vale ou não a pena ser contido nas suas páginas, a eliminação de redundâncias, a organização da informação dispersa segundo uma determinada “ordem e encadeamento”, um qualquer quadro sistemático que a ordem alfabética fez desaparecer, mas que, implícita ou explicitamente, está sempre presente. Ao passo que, no hipertexto não há, pura e simplesmente, qualquer sistema de seletividade. Mais uma vez, esta condição não seletiva do hipertexto arrasta consigo problemas de credibilidade, legitimação, erro, engano, contra-informação (individual e institucional)”.

Analisando a problemática colocada por Pombo, percebemos que, ao mesmo tempo que muito mais conteúdo pode ser tratado pela internet e os links serem mais fáceis (não precisamos mudar de livro, basta dar um “back” ou um “search”), o excesso de informação sem edição pode ser prejudicial. A redundância, a falta de credibilidade e o maior espaço para erros podem colocar o projeto por água abaixo. Qual critério deve ser levado em consideração para acreditarmos no que um determinado site nos informa? Por que não levamos a sério o que um blogueiro escreve, sendo que pode ser ele mesmo quem nos fornece conceitos na Wikipedia, por exemplo? Por que, quando o site de fofocas TMZ notificou a morte de Michael Jackson antes de todos os outros veículos, muitos fãs não confiaram e só deram crédito à notícia quando a CNN confirmou pela TV ao vivo?

Ainda seguindo a linha do que Pombo questiona, o que faremos com toda essa informação? Jorge Luis Borges, no conto Funes, o memorioso, já prevê o que esse excesso pode trazer. O homem que possui a maior memória do mundo vive isolado e não consegue fazer as relações necessárias. Ele grava, recorda, mas nem sempre pensa. Ele não seleciona o que merece ser lembrado e o que deve ser jogado fora.

Paulo Serra, em Informação e sentido, também aborda essa questão de forma clara: “Grande parte dos teorizadores da "sociedade da informação" - que partilha, com os iluministas, da crença otimista de que o conhecimento tem um caráter auto-formador e emancipatório -, tende a pensar que mais informação leva, necessariamente, a um acréscimo de conhecimento. No entanto, e a acreditarmos em autores como Postman e Baudrillard - que podemos considerar, neste aspecto, como paradigmáticos -, o acréscimo de informação não só não acarreta um acréscimo de conhecimento como conduz, mesmo, ao seu decréscimo; assim, e para citarmos a conhecida fórmula de Baudrillard, "estamos num universo em que existe cada vez mais informação e cada vez menos sentido", em que a "inflação da informação" corresponde uma "deflação do sentido"”.

De fato, os links perdem um pouco seu sentido quando não sabemos o que fazer com eles. Em quais clicar? Quais valem a pena ler? Mais informação não significa necessariamente que entendemos o sentido do que acabamos de ler. A informação torna-se passageira, momentânea. Acabamos de ler uma notícia, mas não fazemos as relações dela com nossos conhecimentos prévios, fator essencial para construirmos uma linha de raciocínio consistente.

Serra, citando Postman, ajuda a esclarecer: “a "deflação do sentido" devesse, essencialmente, ao fato de a "explosão da informação" (que, iniciada com a imprensa, atinge o seu auge com o computador), originando um mundo cada vez mais "improvável - um mundo em que verdades, valores e normas se multiplicam até ao infinito, tornando impossível qualquer escolha fundada -, conduzir a uma desorientação existencial cada vez mais acentuada”.

E segue, citando Baudrillard: “o problema da "deflação do sentido" coloca-se, sobretudo, a partir da mudança de natureza dos media do regime clássico da "representação" (assente na trilogia representante, representado e medium) para o novo regime da "simulação" (que envolve não só a "implosão" da mensagem no médium como a "implosão" do próprio medium) - um regime que, ao produzir a indistinção crescente entre representante, representado e medium, faz com que, quanto maior seja a informação sobre o "referente" ou o "real", mais nos afastemos dele (e, assim, do próprio "sentido")”.

Mais adiante, Serra descreve os três principais problemas do projeto de enciclopédia como memória artificial, já percebidos por Diderot e D’Alembert, que ainda hoje merecem destaque:

1 – A alteração constante dos conhecimentos: A internet pode solucionar essa questão, já que os updates são feitos constantemente, não ficando desatualizada por mais do que alguns minutos. Mas será que essa rapidez pode ser confiável?

2 – O tipo de organização utilizada: Foi escolhida a ordem alfabética como base para se encontrar o que se procura, assim como se fosse um dicionário. Junto com isso, vinha a referência cruzada, ou seja, um verbete poderia remeter a outro. Era o princípio do link.

3 – Quais informações merecem ser reunidas, divulgadas e transmitidas para as próximas gerações: Como já foi dito anteriormente, essa questão deve ser pensada, mesmo com a possibilidade da memória infinita da web. A edição era importante por conta do espaço. Hoje, a edição serve para que tudo não se torne um grande “ctrl + c / ctrl + v” da humanidade, sem pensar, sem ter um sentido, sem trazer reflexões sobre a relevância do que estamos lendo.

Serra levanta também como a internet tem se aproximado cada vez mais da televisão, já que mais tem servido de entretenimento do que local para formação de conhecimento, uma vez que a busca pela informação só é útil quando já se é alguém informado, que procura relembrar. Caso contrário, pula-se de link em link, sem saber quando parar, quando encontrou o que procurava.

O projeto de enciclopédia virtual pode ser tão grandioso como da Enciclopédia de Diderot. Mas não adianta ter apenas a técnica para tal funcionar. A ideia de um simples clique nos colocar em contato com o conhecimento é fantástica, contanto que tenhamos consciência suficiente para usarmos essa ferramenta. Junto com o aprimoramento técnico, deve haver um aprimoramento intelectual que pense a melhor forma para o projeto funcionar de fato e não apenas existir. A propaganda não deve ser “veja como somos capazes de realizar”, mas “veja como somos capazes de pensar”.

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