sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Enciclopédia anárquica?

Em sua crença absoluta na razão, os iluministas supunham que mais informação gerava automaticamente mais conhecimento ao homem, por isso os seus esforços para efetivar o projeto enciclopedista. Este consistia em compilar, mais, represar todo o conhecimento humano desenvolvido até aquele momento.
Constituído pelos conhecimentos essenciais desenvolvidos empiricamente nas áreas das ciências, das artes e dos ofícios, excluindo deste modo as “superstições”, transmitidas geralmente de forma oral, a enciclopédia visava expor o sistema geral de pensamento aos homens de sua época e, o mais importante, transmiti-lo aos seus descendentes, de modo que o acúmulo de conhecimento tornasse as pessoas mais virtuosas e felizes.
No entanto, podemos identificar já na Idade Média modelos de enciclopédias com o mesmo objetivo comum de agrupar o conhecimento em sua totalidade. Portanto, parece que o esforço em construir uma memória coletiva é um sonho antigo do homem. Ou talvez, a angústia? Gerada pela produção de tão diferentes tipos de conhecimento, leve o homem a sempre almejar catalogá-lo, para não perder nada.
No entanto, as limitações impostas pelo papel que, se de um lado tornava a seleção do conhecimento exposto na enciclopédia mais criteriosa (pelos que a organizavam, obviamente), em um determinado momento tornava quase impossível o seu prosseguimento.
Por isso da desilusão em relação a ela em meados do século XX e a tentativa, a partir da década de 70, de criar uma alternativa à sua tradição positivista, em que se deixava de lado a cobertura ostensiva das disciplinas por um “tratamento crítico dos temas transversais mais decisivos da nossa contemporaneidade”, como Olga Pombo explica em seu texto “Enciclopédia e Hipertexto. O Projecto”. Ou seja, tornar o projeto da enciclopédia mais aberto, apenas apontando caminhos e permitindo diferentes leituras.
Porém, já na década de 90 a internet se desenvolve e é implementada de forma vertiginosa, surgindo no horizonte como uma esperança renovada ao projeto enciclopedista. E a figura do hipertexto, “dispositivo que permite conectar em rede as informações disponíveis em todos os servidores do mundo” (POMBO:1, 2008), se mostra como o maior fundamento desta esperança.
Atualmente, é possível encontrar resultados para qualquer palavra que se escreva no espaço de busca do site Google. Qualquer um pode expor sua “descoberta”, opinião, trabalho sobre determinado assunto por meio de blogs, sites de relacionamento, twitter e etc. Já há inclusive, uma enciclopédia inteiramente elaborada no espaço virtual. Na Wikipedia, qualquer um pode colaborar, escrevendo e postando sobre qualquer assunto, podendo ter seu texto modificado ou inteiramente suprimido por outrem.
Portanto, se de um lado a internet e sua ferramenta de hipertexto tornam aparentemente possível o sonho do projeto enciclopédico de represar todo o conhecimento humano, por outro acaba com a seleção criteriosa do mesmo. Sem contar com algum tipo de controle mais intensivo (tão fácil quanto achar na internet sites de receitas culinárias, é se deparar com os de propaganda neonazista), a internet acaba servindo de abrigo a qualquer tipo de texto, ou melhor, “conhecimento”. Supersticiosos, religiosos, controversos e/ou simplesmente falsos, mas que não deixam de se apresentarem como cientificamente corretos.
Por isso que, em minha opinião, a internet é a prova de que a afirmação iluminista de que mais informação gera mais conhecimento ao homem é falsa. Nunca tivemos, por meio do hipertexto, acesso a tanta informação e, ao mesmo tempo, tamanha falta de produção e reprodução do conhecimento.
Há centenas de sites denunciadores da violação dos direitos humanos nas mais diversas situações e lugares que, em muitos casos, deliberadamente ou não, não são cobertos pela mídia tradicional (representada pelos jornais impressos e a televisão). Vê-se alguma grande mobilização na sociedade? Os protestos individuais no twitter contrários às eleições fraudulentas no Irã, de alguma forma contornaram o drama desse país?
Hoje não há movimento social que feche os olhos e não se valha da internet e de suas ferramentas de visibilidade. Afinal, esta representaria uma alternativa à mídia tradicional dominada pelas elites que só divulgam notícias de seu interesse, certo? Infelizmente, o seu poder é muito limitado frente à televisão, por exemplo. O seu próprio caráter desarticulado e, como afirma Pombo em relação ao hipertexto, acéfalo, impedem que haja um impacto maciço nas pessoas. Também como afirma João Villaverde em seu artigo para este site, são poucos, numa sociedade extremamente desigual, que têm acesso a computadores e internet.
Então a solução seria um controle do hipertexto, por meio da seleção do que pode ou não ser linkado? Mas aí não se estaria justamente acabando com o que, para o bem ou para o mal, é a maior vantagem da internet, a sua democracia anárquica? Claro que, aqui quero evitar a ingenuidade de acreditar que, no cyberespaço todos os conteúdos têm o mesmo tipo de tratamento.
Sabe-se que os sites que aparecem em primeiro nas buscas do Google pagam para isso e que os grandes meios de comunicação têm versões online que estão entre os sítios mais acessados. Por isso é primordial uma articulação maior dos movimentos sociais, por exemplo, no sentido de discutir as ferramentas à disposição na internet e a melhor maneira de organização.
Vale citar por último que, apesar das aparentas possibilidades infinitas do hipertexto para concretização do sonho enciclopédico, este não deixa de muitas vezes se mostrar inviável. Uma tentativa de colocar na web todos os títulos da biblioteca de Washington caminha para um fracasso retumbante.

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