sábado, 7 de novembro de 2009

Não entre em pânico: internet, enciclopédia e ficção científica

Por Giovanna Montemurro

tudo dito,

nada feito,

fito e deito

Paulo Leminski

As palavras deste tílulo são um dos motivos apresentados em nO Guia do Mochileiro das Galáxias para a popularidade do Guia perante a concorrente Enciclopédia Galáctica (Na série de Isaac Asimov, Fundação, a Enciclopédia Galáctica aparece como o acúmulo de todo o conhecimento humano). A famosa frase e seu preço “ligeiramente mais barato”, levaram o Guia a substituir a Enciclopédia como "repositório padrão de todo o conhecimento e sabedoria" na série de ficção científica de Douglas Adams.

Parece que a ficção, neste caso, apresenta uma comparação interessante com a realidade e um ponto de partida para a discussão da relação contemporânea entre a internet e a enciclopédia. Se a Enciclopédia Galáctica é a enciclopédia tradicional, o Guia do Mochileiro das Galáxias é a internet (sua evolução exponencial e concorrência avassaladora).

As palavras “não entre em pânico” parecem pertinentes: somente alguém como o Funes de Borges (sem angústias, pois não pensa sobre toda a informação que absorve) se sentiria verdadeiramente confortável lendo algo como o Guia (seria a internet o mal-estar da nossa civilização?)

O próprio Asimov, que além de grande escritor de ficção científica era também visionário da tecnologia que estava por vir, antecipou a característica totalizadora e centralizadora da internet.

“Haverá uma tendência para centralizar informações, de modo que uma requisição de determinados itens pode usufruir dos recursos de todas as bibliotecas de uma região, ou de uma nação e, quem sabe, do mundo. Finalmente, haverá o equivalente de uma Biblioteca Computada Global, na qual todo o conhecimento da humanidade será armazenado e de onde qualquer item desse total poderá ser retirado por requisição.” Disse em 1979, em seu livro Escolha a Catástrofe.

Diz-se de Asimov que previu em seus livros o aparecimento de mecanismos como a Wikipédia (quando falou da participação de todos na construção do conhecimento) e como o Google Books (quando mencionou uma grande biblioteca computadorizada que guardaria todos os livros).

Não é só na relação entre certas obras ficcionais e a internet/enciclopédia que podemos observar a relação deste tema com a ficção científica. Na enciclopédia original, o (ainda em desenvolvimento) hipertexto servia como forma de comunicação e confronto com a realidade opressora. Robert Darnton explicava que “o elemento radical da enciclopédia não residia em um visão profética mas em sua tentativa de mapear o mundo do conhecimento segundo novas fronteiras.” Dessa forma, os enciclopedistas utilizavam as referências cruzadas para informar, criticar e satirizar.

No mundo da informática e da internet, essa função é deixada, na maior parte das vezes, na mão das máquinas, que, como o Google Robot[1], pesquisam, organizam e hierarquizam informações. Não seria importante, no entanto, questionar essa hierarquização e seus sentidos? Em um mundo em que todos depositamos nossos conhecimentos no Google e um Robô é responsável por organizar de maneira lógica a informação (e isso é plenamente aceito como verdade por todos), não estamos a caminho de um roteiro de ficção científica?

Ainda dentro dessa lógica, devemos lembrar que a internet sai completamente do modelo de organização e memória aceitável para seres humanos. Se a enciclopédia pretendia resumir todo o conhecimento relevante em um dado período de tempo, a internet pretende acumular todo o conhecimento humano de todos os tempos (independentemente de repetição ou irrelevância). Quando saímos do resumo e fomos para o acúmulo Baudrillard lembra: construir uma “memória artificial talvez seja a garantia maior de que o esquecimento será perfeito.” E Kundera conclui: “a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento” (então o Google tem o potencial para nos levar de volta a 1984).

Dentro desse paradoxo da internet (de busca de acúmulo de todo o conhecimento e de delegação dos hipertextos para os mecanismos eletrônicos), vivemos um momento em que a seletividade é feita a posteriori, segundo Paulo Serra, e “só funciona na medida em que o leitor é detentor de competências críticas de discriminação do que é importante.”

A internet individualiza, portanto um dos processos mais importantes da enciclopédia (a seleção) e mecaniza o outro (a ligação entre conhecimentos). Dessa forma, ela mecaniza a memória, desumaniza o homem e tira o sentido da comunicação. Isso porque, para a memória humana, acréscimo de informação não é acréscimo de sentido e “essa condição ilimitada do hipertexto tem como efeito a desorientação, a sobrecarga, a banalização e a indiferenciação dos conteúdos veiculados”, conclui Paulo Serra.

Dessa forma, embora a internet aparentemente resolva os problemas inerentes à enciclopédia, talvez a comunicação humana precise de um meio tão limitado quanto os próprios homens.

Toda essa discussão é bastante pertinente para meios jornalísticos na internet (“Se hoje a informação é de graça, quanto vale o conhecimento?”). Neles, há uma ânsia por abraçar por completo todas as informações, informando até o mais irrelevante dos fatos “como registro”. Precisamos lembrar sempre que o Jornalismo como ciência pretende transformar informação em sentido e que o leitor pretende encontrar sentido na informação e não uma pilha de notícias.



[1] Vale lembrar que as leis da robótica de Asimov não falam nada sobre informação, apenas sobrevivência.

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