sexta-feira, 13 de novembro de 2009

A nova luta será pela orientação

Por Érica Saboya


Compactar os conhecimentos e as informações produzidas no mundo todo, em todos os tempos - com possibilidade de atualização a cada segundo - numa máquina de trinta centímetros de largura e ao alcance de qualquer cidadão é o que os enciclopedistas do século XVIII chamariam de solução sublime para o acesso ao conhecimento. Desenvolvida desde meados da década de 80 do século XX, a internet foi responsável por uma das maiores revoluções da comunicação entre os homens e é hoje elemento central da organização do mundo contemporâneo. Como nova forma de compilação de informações, a web está reorientando a percepção do conhecimento pelo homem, que já havia sido alterada com a criação da enciclopédia.
Em seu texto “O projeto da enciclopédia e seus registros sobre o jornalismo”, o Prof. Dr. Antonio Hohlfeldt faz um levantamento do projeto de enciclopédia que foi dirigido em 1750 pelos franceses d’Alembert e Diderot. Tratava-se, segundo o autor, da necessidade da época de se compilar o conhecimento, fazer um mapeamento do que se sabia até então, como um projeto político para formar cidadãos. “O elemento radical da Enciclopédia (...) residia em sua tentativa de mapear o mundo do conhecimento segundo novas fronteiras, determinadas única e exclusivamente pela razão”, em palavras de d’Alembert. O projeto era ambicioso e já antecipava o que a rede viria a possibilitar séculos depois. Mas ainda apresentava problemas praticamente insolúveis diante de seu formato: a necessidade de atualização constante de um material extenso, a escolha de um princípio de organização sistemática que era inevitavelmente arbitrária e a seleção do tipo de conhecimento a ser reunido.
Foi com o advento da internet - e sua infinita capacidade de conglomerar dados- que tais limitações puderam ser superadas. Olga Pombo, no texto “Enciclopédia e Hipertexto. O projeto”, afirma que a web se coloca como a potencialização última da idéia de Enciclopédia, mas também aponta deficiências nesse sistema. Para ela, o próprio limite físico da enciclopédia é vantajoso, uma vez que exige uma seleção, uma organização prévia das idéias pelos enciclopedistas, que indicarão caminhos a serem seguidos entre as informações. O hipertexto, ao contrário, em sua condição ilimitada leva o usuário à desorientação, à sobrecarga e à banalização do conteúdo que é veiculado. As possibilidades de links na internet são tão abundantes que é difícil que se navegue entre eles com coerência e lhes dando sentido.
É neste ponto que nos deparamos com a questão mais relevante da discussão: a informação em excesso. Certamente o acesso fácil às mais variadas formas de conhecimento trouxe certa democratização à comunicação. As informações não são mais exclusividade de editores de grandes jornais ou de políticos ávidos por manipulação em benefício próprio. Mas a questão que se coloca aqui é: o que fazer com tantos dados disponíveis e que se multiplicam a cada segundo? No texto “Funes, o Memorioso”, o personagem de Jorge Luis Borges adquire a capacidade de reter em sua memória cada detalhe de todas as coisas que ele vivera e sonhara. Funes não consegue apagar de sua memória os mais ínfimos gestos, acompanhados de sensações e emoções muito particulares. Mas isso o impede de pensar, de analisar sobre o ele vivencia, uma vez que, para Borges, o pensar exige esquecer diferenças, generalizar e abstrair. O acúmulo infinito de informações, portanto, é apresentado como irracional e engessador do julgamento crítico.
Justamente sobre isso é que o autor Paulo Serra trata em seu texto “Informação e Sentido”, uma discussão fundamental para a compreensão do homem contemporâneo. Serra defende que o bombardeamento de informações a que estamos submetidos leva a um esvaziamento do sentido. Isso é facilmente verificável no cotidiano dos meios de comunicação. Todos os dias recebemos informações minuciosas sobre a guerra do Iraque, por exemplo, como número de mortos em cada ataque, valores gastos com armamentos, nomes de generais e líderes terroristas. É raro, entretanto, que a gente reflita sobre papel daquela guerra na geopolítica mundial, porque ela está acontecendo, quem ela envolve e como ajudou a configurar o mapa atual das relações internacionais. Tais reflexões tornaram-se dispensáveis, secundárias, soterradas pela insaciável vontade por mais e mais dados, desprovidos de sentido prático. Poucos conseguem elaborar um esboço razoável sobre as principais questões de nossa época. Lamentavelmente, vivemos a cultura do esvaziamento.
Mesmo a matriz educacional brasileira está assentada sobre essa idéia de acúmulo infinito de informações. Nossas escolas desconsideram a vivência do que se ensina aos alunos e a articulação entre os conhecimentos fornecidos a eles como elementos fundamentais para a construção de cidadãos críticos. O resultado é milhões de pessoas com uma ferramenta valiosíssima na mão, como a web, mas incapazes de usá-la de maneira consistente, de fazer a seleção entre o que deve ser aproveitado e o que deve ser esquecido dentro dela.
Essas considerações são caras a uma geração que provavelmente verá essas tecnologias de armazenamento de dados se tornarem cada vez mais poderosas. Precisamos pensar novas maneiras de formar os cidadãos da nova era, para que se tornem pessoas aptas a lidar com o hipertexto, dando sentido ao mundo em que vivem. A internet é, sim, um exímio recurso de complementação da formação dos indivíduos, mas jamais poderá assumir esse papel sozinha. Chegará o tempo em que a luta pelo poder não mais será a da memória contra o esquecimento, mas a luta da crítica contra a desorientação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário