quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Aqui jaz a lembrança

No universo das histórias em quadrinhos, o pai do Super Homem era um importante cientista do planeta Krypton cuja obra-prima era o supercomputador Brainiac, que armazenaria o conhecimento de todas as partes da galáxia. Assim, a memória de todos os planetas estaria segura.
A idéia de uma compilação de conhecimento de todos os povos e todas as épocas não é nova. Desde os primórdios, o homem busca preservar a memória através de registros, sejam eles escritos ou não. A arte é uma dessas maneiras. Protegendo sua memória, o homem protegeria a si mesmo da morte, mantendo-se vivo nos registros de seus semelhantes.
Porém, foi no século XVIII, durante o Iluminismo, que esse desejo tomou sua forma “científica” ou “lógica”. A idéia dos pensadores iluministas era não só reunir todo o conhecimento da humanidade, mas também catalogá-lo segundo critérios científicos (laicos). Dessa forma, sua Enciclopédia (como chamada por eles) reuniria todo o saber do homem sem o controle e as deformações impostas pela Igreja.
A enciclopédia dos iluministas encontrou diversos obstáculos, entre eles a dificuldade para atualizá-la, uma vez que era um processo bastante dispendioso realizar novas pesquisas e novas edições periodicamente. Além disso, havia um lapso significativo de tempo entre a pesquisa da informação e sua consulta, ou seja, parte das informações inevitavelmente se desatualizaria.
Com a revolução tecnológica vivida na segunda metade do século XX, o antigo projeto dos enciclopedistas do Iluminismo ganhou novo fôlego. Ora, não só era possível pesquisar grande quantidade de informação como também publicar essa informação em tempo recorde. Além disso, um número imenso de pessoas tinha acesso a essa informação, pois ela estava consideravelmente mais barata e as pessoas estavam consideravelmente mais instruídas.
Agora as fontes eram as mais diversas. Os conceitos de informação eram outros, uma vez que o mundo havia mudado radicalmente. Cada vez mais interconectado, a informação (em sua nova definição) propagava-se em velocidade alucinante através dos modernos meios de comunicação. Nos novos tempos, ao final do século XX, as informações que antes constariam da Enciclopédia, agora estavam disponíveis em vários formatos: jornais, revistas, livros, filmes, músicas, imagens e também em formato eletrônico, em um meio recente, a Internet. Originalmente desenvolvida para propósitos militares, a Internet tornou-se um imenso repositório para uma quantidade infinita de informações. Possivelmente, a superação definitiva da memória humana.
A Internet tornou-se uma enciclopédia muito mais eficiente que a Enciclopédia Iluminista não só por suas capacidade e velocidade infinitas, mas também por conta de seu grande avanço técnico. Utilizando a ferramenta “hipertexto”, um atalho rápido para informação relacionada a certo tema, a pesquisa torna-se rápida e quase intuitiva. Um imenso número de temas pode ser ligado através do hipertexto, levando o leitor de informação a informação em pouco tempo. Assim, temas relacionados (ou não) estão próximos a qualquer instante que se precise deles.
Há uma ressalva, porém, na imensa quantidade de informação disponível ubíqua e instantaneamente graças à Internet e seu hipertexto. No conto “Funes, o Memorioso”, o personagem Funes não consegue distinguir o tempo em que vive e as experiências pelas quais passa. Funes possui uma memória fantástica, que o impede de esquecer qualquer pormenor visto, ouvido ou vivido, por irrelevante que seja. Assim sendo, Funes não distingue os fatos marcantes de sua vida e é incapaz de situar-se no tempo, vivendo em um “instantâneo permanente”.
Assim acontece também com o hipertexto da Internet. A imensa quantidade de informação permanentemente armazenada e disponível torna-se um fardo. No lugar de auxiliar a memória humana, seletiva e falha, a Internet a sobrecarrega de informação. Impossibilitado de esquecer, o homem deve consumir os dados disponíveis instantaneamente, não absorvendo nada de suas experiências; não é possível nem necessário retê-las, uma vez que elas podem ser facilmente acessadas novamente na Internet.
A separação entre informação fútil e relevante na Internet (e em outros meios também, cada vez mais rápidos e abundantes) tornou-se muito difícil. Uma vez que se dispõe de imensa quantidade de conhecimento e ao mesmo tempo não se consegue reter este conhecimento, o homem não tem como relacioná-lo a fatos vividos ou dados conhecidos. O raciocínio se torna impossível.
Ora, talvez a maior virtude da mente humana seja justamente a capacidade de esquecer. Com sua memória prodigiosa, Funes não conseguia reter seus momentos marcantes, sendo obrigado a se recordar de cada detalhe, sem poder relacioná-lo a outros fatos ou detalhes e, pior, sem poder avaliar sua importância. Todas as formas que o homem utilizava para preservar sua memória antes da Internet visavam proteger momentos e fatos marcantes. As pinturas e esculturas, os cânticos e textos religiosos guardavam os aspectos mais relevantes da vida de um povo ou de um personagem. Dessa forma, seus autores protegiam-se da morte e do esquecimento, seguros de que sua representação seria passada às próximas gerações.
Ao matar o esquecimento, o hipertexto e outros meios hipertrofiados vão matar também a memória.


Mario Dallari Bucci - 06000464

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