sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O papel da Internet no desafio de organizar o conhecimento

Alexandre Napoli (06004502)

As formas de organizar o conhecimento são episodicamente contestadas e suplantadas ao longo dos séculos. Na esteira dos ideais iluministas, surgiu o projeto que se firmou como hegemônico até a atualidade: a Encyclopédie ou Enciclopédia Francesa, de Jean le Rond d'Alembert e Denis Diderot. Inovadora tanto em sua concepção do conhecimento humano quanto no formato, a Encyclopédie representa um marco na evolução das formas de organização do saber. Ao identificar o conhecimento tradicional como uma forma de saber fundamentada em superstições e preconceitos, seus idealizadores apostavam na razão como único meio para se chegar à verdade, rompendo com a versão católica da revelação como base da ciência. Epistemologicamente, alicerçava-se no empirismo de John Locke e Francis Bacon e, como colaboradores, contou com ícones do pensamento iluminista francês, como Voltaire, Rousseau, e Montesquieu.

Tanto ou mais revolucionário que suas bases teóricas era seu formato. Rejeitando o único método de organização de obras do tipo - o método enciclopédico, que arranjava o conteúdo por temas, - a Encyclopédie de d’Alembert e Diderot adotou o método do dicionário, organizando os artigos por ordem alfabética. Em cada tópico, acrescentava-se, em parêntesis, o campo de conhecimento ao qual ele pertencia, e um novo recurso, reconhecido como o mais inovador da Enciclopédia, denominado referência cruzada, representava um avanço enorme em relação aos modelos enciclopédicos anteriores. A referência cruzada é um artifício através do qual um tópico da Enciclopédia remete a outro tópico relacionado a um mesmo tema. Transplantando para a atualidade, o conceito pode ser comparado a um link de uma enciclopédia virtual de modelo wiki. Este recurso abre uma perspectiva imensa e alça a pesquisa a um potencial virtualmente infinito.


Apesar de sofrer certo abalo depois do fracasso do projeto enciclopédico positivista, e, em função disso, cair em descrédito durante certo período do século XX – notoriamente, entre as décadas de 1940 e 1960, quando, sobretudo na literatura, destacam-se autores como Alberto Savino, Georges Perec, Ítalo Calvino e Jorge Luís Borges, que questionam e criticam a obsessão racionalista do modelo enciclopédico –, este modelo concebido por d’Alembert e Diderot atravessou incólume grande parte do século XX. De fato, nem as significativas mudanças às quais ele esteve confrontado durante a década de 1970 - data do surgimento de enciclopédias de concepção inovadora, que rejeitavam a perspectiva positivista e a organização alfabética dos temas, como a Britannica, a partir da 15º edição (1973-1974), a Universalis (1968-1975) ou a Einaudi (1977-1984), – foi capaz de modificar profundamente sua estrutura. Ao mesmo tempo, nenhum outro modelo à altura surgiu para rivalizar ou roubar-lhe o lugar.


No entanto, algumas falhas e limitações graves do modelo de d’Alembert e Diderot faziam ansiar por novas formas de organização do conhecimento ou, ao menos, por técnicas e procedimentos que o aprimorassem. Em seu texto Informação e Sentido – Notas para uma abordagem problemática do conceito de informação, Paulo Serra situa com clareza três dos mais sérios problemas do modelo da Encyclopédie. O primeiro, segundo ele, refere-se à constante necessidade de atualização. Uma necessidade que uma enciclopédia como essa não pode suprir, porque faltam-lhe meios mais ágeis para fazê-lo. Considerando o tempo que um projeto como a Encyclopédie demora a ser finalizado (a publicação de seus 17 volumes de texto e 11 de gravuras durou cerca de 22 anos), é de se esperar que, no momento em que chega às lojas, suas informações já estejam ultrapassadas. Por outro lado, ao tentar remediar essa situação com atualizações permanentes, o conteúdo da enciclopédia alargará cada vez mais, chocando-se com um dos preceitos básicos do projeto, o de oferecer uma carga de conhecimento relevante e atual de maneira resumida.


O segundo problema apresentado pelo autor refere-se ao critério segundo o qual um “princípio de organização sistemática” é adotado. Que argumento orienta e legitima a escolha de um princípio, em detrimento de outro? Serra defende que, já que partimos de uma infinidade de princípios possíveis, e escolhemos apenas um, nossa escolha só pode ser entendida como arbitrária. O terceiro problema diz respeito ao tipo de informação que merece ser divulgada. Com quais critérios classificamos uma informação como relevante, e outra como supérflua? Ou melhor: como podemos distinguir uma da outra? Como separar uma informação científica, comprovada racionalmente, de uma informação cujo apelo reside exclusivamente em seu caráter curioso, espetaculoso, descartável?

Aparentemente, a solução para esses três impasses reside na nova linguagem cibernética fundamentada no hipertexto. Quanto ao primeiro problema, o da necessidade de atualização, a Internet o resolve facilmente, por ser um tipo de mídia cuja atualização se dá de forma permanente e instantânea, eliminando, nas palavras de Serra, “o tempo de intervalo entre a produção (publicação) e a recolha (consulta) da informação”. Quanto ao segundo problema, a questão do critério que norteia a escolha de um determinado princípio de organização, a Internet o supera por possibilitar o emprego de um número ilimitado deles, devido à capacidade quase infinita de sua “estrutura hipertextual”, e aos vários sistemas de pesquisa disponíveis. O terceiro e último problema - referente ao critério que orienta a classificação de uma informação como importante ou inútil -, torna-se também suplantado, pois a rede, por meio de sua infinita capacidade de armazenamento, pode reunir qualquer tipo de informação, não apenas as consideradas importantes ou relevantes. Na Internet, a preocupação com o espaço desaparece, e a preocupação com o tempo diminui sensivelmente.

No entanto, apesar do desenfreado otimismo que a mídia cibernética suscita, ela peca justamente pela característica lhe dá mais brilho: o excesso. Como demonstra o autor, a superexposição de informações acaba por suprimir-lhe o sentido. Com informações tão variadas e abundantes na rede, torna-se praticamente impossível separar o joio do trigo, a informação relevante do lixo informativo. Se, a princípio, a Internet parece realizar o projeto enciclopedista da criação de uma memória artificial sobre-humana, ela esbarra na impossibilidade da seleção, do filtro, do crivo que discrimina a informação importante da informação irrelevante. Se nos lembrarmos de tudo ao mesmo tempo, não teremos a capacidade de hierarquizar as questões mais caras ao conhecimento humano. Nesse sentido, Serra expõe o paradoxo de que somente a memória humana – falha, limitada, frágil – e não a memória das “tecnologias da informação”, é capaz de imprimir sentido à informação.

O autor ressalta que a possibilidade de seleção da informação é possível se o cibernauta possuir o mínimo de instrução, e tenha o “mapa do território” da informação que deseja buscar. Caso o usuário da rede não possua este mapa, “resta-lhe navegar às cegas, saltitando de site para site, de informação para informação, até deparar com a informação mais fácil, ou a mais atrativa, ou mesmo a mais chocante”. Para ilustrar o argumento, Serra cita o paradoxo desenvolvido por Platão, de que “a informação (importante) só tem utilidade para quem está informado (e conhece); a quem não está informado (nem conhece), de nada serve procurar essa informação”.

O texto problematiza as fragilidades do projeto enciclopédico com admirável poder de síntese. Ao equacionar as limitações do modelo da Encyclopédie, e dividi-las em três problemas principais, Serra nos mostra com bastante precisão o que impede a realização do sonho dos que se ocuparam, até agora, da tarefa colossal de organizar o conhecimento humano. Também é bastante rica a análise de como a Internet poderia superar os obstáculos físicos e temporais, inerentes ao projeto enciclopédico de d’Alembert e Diderot. Não obstante, a revelação do texto está no reconhecimento de que o espaço cibernético não representa a cura de todos os males, mas pelo contrário, acirra ainda mais os paradoxos entre informação e conhecimento. Este diagnóstico desmistifica com contundência o mito da informação, de que “as maquinas da memória” realizarão o sonho moderno de “registrar, conservar e transmitir todas as memórias – garantindo assim a abundância de sentido”. Segundo Serra, a incapacidade da Internet em filtrar o conteúdo informativo faz desta qualidade de armazenamento um peso morto, já que da nada adianta reunir todo tipo de informação se não é possível selecioná-la ou classificá-la.

Um ponto fraco do texto refere-se à crença excessiva de que o usuário da Internet é um inapto por excelência; como se o cibernauta fosse incapaz de distinguir qualquer tipo de informação, e precisasse o tempo todo de um guia didático que o acompanhasse através dos sites. Essa depreciação do cibernauta revela uma fé ingênua de que só é possível buscar informação e adquirir conhecimento através dos modelos tradicionais de organização do saber; como se ato de entrar em contato com o conhecimento fosse uma ação puramente passiva, não exigindo nenhum empenho do leitor.

Outra lacuna do texto é a ausência do debate sobre a falta de credibilidade da informação veiculada nas redes. À medida que a Internet democratizou o acesso à produção de conhecimento, ela também o banalizou. Hoje qualquer um pode escrever na rede e alçar a informação a um status de informação científica, bem apurada e definitiva. A proliferação das enciclopédias de modelo wiki convidam o leigo, ou não especialista, a contribuir com informações. È claro que ela tem um mecanismo interno que atesta sua validez, mas sempre estará no ar a dúvida de que a informação possa ter sido redigida por um usuário qualquer, desprovido de rigor algum. Tanto ou mais importante do que a discussão proposta pelo autor, de que a abundância de informações satura a Internet e esvazia o sentido da informação, a falta de credibilidade é talvez o mais forte obstáculo à substituição definitiva do modelo enciclopédico de d’Alembert e Diderot por seu equivalente digital.

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