sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Como se fosse eterno (e viciante)

Por Marina Dias

A comparação teórica – e até mesmo prática – entre enciclopédia e internet parecia, à primeira vista, praticamente impossível. Duas ferramentas de conhecimento produzidas em momentos históricos tão diferentes não poderiam ter suas funções cruzadas em pleno século XXI. Isso era o pensamento mais comum. Pelo menos, era o que parecia ser.

O projeto da Enciclopédia francesa foi desenvolvido por d’Alembert e Diderot em 1750, quando a razão já era afirmada como fonte de conhecimento, em detrimento da revelação, postulada pela Igreja Católica. Naquela época, o objetivo dos pensadores era classificar e mapear todas as informações disponíveis até então, utilizadas também como uma vívida ilustração tanto da política como da economia do conhecimento.

Em seu texto O projeto da Enciclopédia e seus registros sobre o Jornalismo, Antonio Hohlfeldt, professor doutor da PUC-RS, afirma que o projeto da Enciclopédia antecipava em séculos o que hoje é possível se fazer com a internet, quando, percorrendo-se um texto, algumas palavras podem ser destacadas de maneira que um simples clique permite o leitor pular diretamente para outra referência, e assim por diante, num progresso quase infinito de busca e cruzamento/aproximação de informações aparentemente díspares.

O primeiro ponto em comum foi então encontrado: Enciclopédia e internet procuram centralizar e mapear todo o conhecimento de uma época, cada um a sua maneira, é claro. Assim como afirma Olga Pombo, em seu texto Enciclopédia e Hipertexto. O projecto, o hipertexto, enquanto dimensão chave da web, se ofereceria como a potencialização última da ideia de Enciclopédia: o século XVIII, ou Século das Luzes, tem a Enciclopédia como uma de suas sínteses. Ainda de acordo com Olga, cem anos de ciência tornam então urgente a construção da “ordem e encadeamento” dos conhecimentos humanos. E no século XX ou XXI, o que podemos esperar da internet?

Assim como a Enciclopédia se constitui na e pela pretensão à exaustividade e à cobertura do saber adquirido pela humanidade até um determinado momento, o hipertexto está marcado por uma inexorável abertura à promessa de um saber em permanente crescimento. É isso?

Não somente. A simplicidade não é característica previsível entre a maior parte das linhas de pensamento e é aí que começam os problemas. Primeiramente, assim como afirma Paulo Serra, em seu artigo Informação e sentido, a alteração constante dos conhecimentos nas ciências e nas artes é um dos grandes obstáculos para os enciclopedistas. Isso porque, ao atualizar o conteúdo, cada vez mais os limites da Enciclopédia vão se alargando, contrariando, assim, um de seus objetivos essenciais: o de resumir o conhecimento relevante de diversas áreas.

Outro ponto, ainda segundo Serra, é a infinidade de conhecimento, que implica na escolha e seleção sobre quais teorias ou explicações estarão em cada livro, já que a escolha é, de um modo ou de outro, arbitrária. Finalmente, a pergunta que fica é: que tipo de informação merece ser reunida, divulgada aos contemporâneos e transmitida aos homens do futuro?

A resposta talvez não seja facilmente encontrada. O que sei é que, desde o início da universidade, somos influenciados a acreditar na teoria da desinformação. Isso porque, as possibilidades ilimitadas de produzir e adquirir conhecimento nos dias de hoje têm como efeito a desorientação, a sobrecarga, a banalização e a indiferenciação dos conteúdos vinculados. O espaço fluido e efêmero da internet está articulado com a infinita variabilidade das suas manifestações perceptivas.

Mais uma vez Paulo Serra, em Informação e sentido, afirma que quanto maior a informação sobre o “referente” ou “real”, mais nos afastamos dele e, assim, do próprio sentido das coisas. Dessa forma, o projeto de construir memória a partir da informação – objetivo dos enciclopedistas e daqueles que pensam o mundo virtual – envolve contradições insuperáveis que aponta, em última análise, para a sua impossibilidade e que essa impossibilidade se deve, finalmente, a uma concepção errada do conhecimento, do sujeito e da própria memória.

Atualmente, como não se cansam de dizer todos aqueles que adoram falar sobre isso, a informação que chega às pessoas é atraente e interessante, antes de ser efetivamente relevante. Isso porque o papel da publicidade e da indústria de consumo, por mais que esteja decadente para alguns desses pensadores, ainda é o carro chefe da relação entre consumidor e produto – leia-se receptor e informação. Esse conhecimento maciço se destina a ser consumido para, em seguida, ser esquecido por todos.

Mesmo assim, temos tanto aquela informação que merecia ser memorizada, mas que, dada a sua exponencialidade e sua hipercomplexidade, torna-se impossível de memorizar, como uma informação que, dirigida a uma curiosidade e um desejo de distrações insaciáveis não pode deixar de ser esquecida. Em qualquer um dos casos, afirma Paulo Serra, há a impossibilidade de uma memória e de um sentido.

O conto Funes, o memorioso, de Jorge Luis Borges, ilustra os problemas de constituição de sentido que se colocam a uma memória absoluta, que tudo nota, registra e recorda. Funes não se esquece de nada, mas fica claro que sua memória já não é humana e que o personagem é a metáfora de uma gigantesca máquina de captação e registro de informações. Mesmo se lembrando de tudo, Funes não resolve o problema da pós-modernidade: separar o que é relevante do que é puramente comercial e dispensável para o conhecimento humano.

O que é imprescindível para um, porém, não é necessariamente imprescindível para o outro. Interessante é notar que por mais que a maioria esteja conectada nesse mundo de 100% de informação volátil – ou bem perto disso – ainda existem aqueles que se dedicam a um único assunto e às suas especificidades. Não que uns ou outros estejam errados. Não que ninguém se lembre de nada ou que todos se lembrem de tudo. Simplesmente porque alguém como Funes não existe e que não necessariamente alguém como ele queira existir.

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