sábado, 19 de dezembro de 2009

A Nova Enciclopédia

No embate entre a enciclopédia e o hipertexto, mais do que informação, formas de transmiti-la e capacidade de recebê-las, está a sociedade e as mudanças das quais é ao mesmo tempo causa e consequência.

Para qual geração saber que Ag é o símbolo da prata na tabela periódica é realmente fundamental? Para esta e a que virá logo em seguida parece não fazer diferença. Se o hipertexto não existisse hoje, ainda assim esta geração não colocaria tal conhecimento na enciclopédia. Tabela periódica não; história da MTV, com certeza.

Outro dia, minha irmãzinha de 12 anos disse, ao comentar sobre quais músicas poderiam tocar no meu aniversário: “tem aquele outro ritmo também, como chama? Ah, MPB”. Chico Buarque, para ela, é só um nome que, de vez em quando, permeia as conversas de adultos. Eu fico triste e, da mesma forma que minha mãe suspirava ao ouvir de mim, quando eu tinha 12 anos, que “Belchior é uma chatice”, percebo a próxima geração mais vazia e... sem poesia.

Então, tento olhar essas crianças “não informadas” mais de perto. Minha irmã nunca leu Shakespeare, mas, de tanta Hanna Montana e Jonas Brothers já tem um inglês fluente, com direito a gírias! Sabe apenas que uma vez, há muito tempo, existiu um cara chamado Marco Polo, mas, por outro lado, encontra os pontos mais impossíveis no mundo virtual em minutos. Ela pergunta se “o Pelé foi tudo isso mesmo”, mas é capaz de criar um jogo de videogame sobre futebol em uma semana.

Não é o nosso ideal de uma pessoa “informada”, mas é o da próxima geração. Assim, para se discutir o quanto de sentido o hipertexto roubou da informação, é preciso entender que é exatamente essa “informação relevante” que gera esse tal de “conhecimento”. Em Enciclopédia e Hipertexto. O Projeto, Olga Pombo diz que “no hipertexto não há, pura e simplesmente, qualquer sistema de seletividade”. Discordo, há sim. O problema é que a seleção sendo feita, diariamente pelos internautas, não é aquela que nós temos como a mais sábia. Mesmo no argumento da autora, de que “trata-se de uma seletividade que só funciona na medida em que o leitor é detentor de competências críticas de discriminação do eu é mais importante, de dispositivos subjetivos de determinação das boas e das más informações”, revela-se a mesma questão de que é a falta de competências necessárias para se obter uma boa informação que torna o hipertexto “um meio de diversão, distração e esquecimento” (Paulo Serra, Informação e Sentido) e não um ambiente democrático e de infinitas possibilidades onde novas competências talvez comecem a substituir, em sua ideia do que é de fato importante, informações antes tidas como boas e que agora são... descartáveis.

Não é a forma como a informação é transmitida ou a sociedade que a recebe. O hipertexto substituiu a enciclopédia porque o Homem de antes também foi substituído. Podemos preferir o passado e até sentir certa pena por uma sociedade que se direciona para um caminho que não temos como o mais acertado. Mas não podemos julgar esses novos indivíduos (e a parte de nós que sucumbiu às novas tecnologias) a partir do que costumava ser importante. Com base em um conhecimento que também ficou... démodé.

No filme Rebobine, por favor, do francês Michel Gondry (um diretor “sem memória”, como sua geração, e que veio do videoclipe), todas as fitas de uma locadora são desmagnetizadas e, para salvar o negócio, dois amigos refilmam tramas como Conduzindo Miss Daisy e 2001, uma Odisseia no Espaço, da maneira como eles lembram ser os filmes, e com recursos mais do que precários. O resultado, além de divertido, explica um pouco a questão do “descaso” pelo passado e da facilidade em substituir memórias. Um clássico do cinema, por muitos considerado uma obra-prima, é apreendido por dois “ignorantes” que de nada entendem de cinematografia, e transformado em outro filme, mais “fácil de entender” e divertido do que o original – e que lota a locadora de clientes. Um insulto a Kubrick ou uma forma de mantê-lo vivo para uma geração que nem de longe o percebe como gênio?

Paulo Serra, em Informação e Sentido, diz que tal abundância de informações oferecida pelos novos meios de comunicação resulta em “um querer saber não para saber mas para o ter sabido”. Pois é justamente o que muitos defendem como a “boa informação”, negligenciada pela massa sem capacidade para apreendê-la, que essa geração tem como um “saber só para ter sabido”. E cito outro exemplo, meu primo de 17 anos. Ele decidiu assistir a obra-prima de Kubrick, “de tanto falarem”. Dormiu na metade. E não porque lhe faltou competência para enxergar a “genialidade” do filme, mas porque, para a sua vida, sua rotina, para quem pretende ser, aquela obra não lhe diz nada.

E isso, de modo algum, significa a queda do médium, para usar o termo de Paulo Serra. Literatos e imprensa podem ter perdido parte de sua importância e influência, mas, ao mesmo tempo, justamente por conta da abundância de informação, são necessários mediadores que digam o que vale ou não a pena ser absorvido. Evan Williams, cofundador e diretor geral do Twitter, ao lançar o site, disse: “jornalistas são os curadores de conteúdo, com o papel de separar o joio do trigo”. “A adoção relativamente arbitrária de um ponto de vista”, caraterística da enciclopédia, permanece no hipertexto. A diferença é que talvez um ponto de vista antes subjugado agora seja o dominante e que aqueles dispensados, ainda que menor, também têm espaço.

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