sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

A internet e o excesso de luz

Como catalogar algo imaterial e constantemente mutável? Se esse era o desafio principal dos iluministas quando surgiram as primeiras iniciativas reunir o conhecimento humano nas chamadas enciclopédias, hoje com a consolidação da internet esse obstáculo parece ter sido eliminado. Isso porque se o que faltava antes eram os recursos para a constante renovação e acúmulo de informações de maneira física, através do papel, o armazenamento virtual hoje dispõe de um espaço infinito e facilmente alterável, assim como o acesso instantâneo a esse "acervo" de qualquer parte do mundo. Esse "limite ideal da enciclopédia" apontado por Olga Pombo em "Enciclopédia e Hipertexto, o Projeto", é a solução com que qualquer iluminista sonharia, mas ainda assim leva a novos obstáculos para sua realização plena.

A começar por sua própria democratização, o que a princípio seria um ponto positivo mas que também traz seus poréns. Da mesma forma que a internet oferece o livre acesso a (quase) qualquer informação, ela também permite que qualquer pessoa públique conteúdos nessa rede virtual e, da mesma maneira, que os altere. Essa pluralidade de fontes aumenta as possibilidades, mas também confunde. Vale dizer que o problema em relação à veracidade daquilo que se lê é anterior à internet, assim como o controle da informação que, assim como a concentração de riqueza, é anterior até mesmo ao capitalismo. A diferença é que se antes tal poder ficava restrito apenas a determinados grupos, e hoje a inserção de informações é possível para qualquer pessoa. Então o problema não é exatamente a distorção dessa memória, mas o excesso de informações que contribuem com ela. Como bem aponta Jean Braudillard, "estamos em um universo em que existe cada vez mais informação e cada vez menos sentido". E assim como a clássica alegoria da caverna de Platão, parecemos viver hoje um momento pós-iluminista, uma transição de homens aprisionados na escuridão para seres livres a caminhar na luz, mas ainda com olhos desabituados a ela. Ou seja, a cegueira pelo excesso de luz, que Braudrillard traduz na "inflação da informação" e "deflação do sentido".

Dessa forma, Olga Pombo tem razão ao apontar a internet como o meio ideal para a concretização desse ideal iluminista, pois o hipertexto é de fato a ferramenta ideal para o arquivamento de informações, por seu espaço de armazenamento ilimitado e possibilidade de alteração constante. Porém, falta a seus usuários ainda a habilidade para lidar com tal. Com tamanho número de informações chegando aos seus computadores e se atualizando e frações de segundo, o homem de hoje precisa desenvolver sua capacidade para absorver e filtrar um volume de conhecimento praticamente impossível. Da mesma forma, ao mesmo tempo que a oferta de informações cresce, o tempo e a capacidade para apreende-las parece se reduzir constantemente. Assim, dezenas de novos conteúdos passam diariamente pelos olhos de um internauta, mas até que ponto isso é absorvido? E, também de forma negativa, esse excesso de velocidade faz com que as informações sejam reduzidas para otimizar o tempo, tornando os conteúdos pouco aprofundados e fazendo com que muito do que entra nessa rede virtual se perca entre páginas de internet na história.

Em contraponto, a possibilidade de contribuir com esse espaço fez com que crescesse muito, nos últimos anos, o hábito de se escrever. Desde a popularização dos blogs e redes sociais como orkut, facebook e etc, até a crescente contribuição de leitores em seus jornais e portais de notícia, que hoje disponibilizam espaços para comentários e contribuições com fotos e depoimentos sobre o que é publicado. Ainda assim, tais informações acabam carecendo de aprofundamento e reflexão, e ao final o que restam são opiniões repetidas e pouco aprofundadas sobre temas facilmente esquecidos. Será isso o que restará às próximas gerações como memória de nossa sociedade atual? O próprio twitter, microblog que restringe as publicações a 140 caracteres traduz muito bem essa tendência com sua popularização. Assim como o que se lê, o que se escreve não ultrapassa as três linhas de pensamento, e assim nossos livros de 700 páginas e anos de pesquisa dão lugar a opiniões instantâneas e levianas.

Outra preocupação é a constante atualização desses próprios mecanismos de armazenamento virtual. Por mais que a superação do palpável, do material, pareça ser necessária, a mudança desses meios e seu controle por terceiros elimina a garantia de uma conservação dessa memória. Afinal, por mais que todos possam contribuir com ela, quem a armazena e controla? Com o aumento do espaço de armazenamento virtual, a tendência é que cada vez menos o usuário conserve alguma informação em seu computador pessoal. Hoje já é possível ouvir música e assistir a vídeos e filmes em streaming, sem a necessidade de se possuir os arquivos em um hd próprio, assim como existem diversas ferramentas online de criação e armazenamento de textos, fotos e qualquer tipo de material. E como se garante a conservação e inalteração disso? E, do mesmo modo, para que fins tais informações serão utilizadas?

Por fim, mesmo que materializada em livros, a informação permanecerá sempre impalpável, e sua conversação plena ainda é um ideal distante. Seja em back-ups virtuais ou antigas escrituras, ela sempre estará sujeita a fatores externos, que variam de posse e uso até sua interpretação. Dessa forma, acredito que o maior desafio a ser superado para uma boa preservação de nossa memória atual é deseolver a habilidade para interpretá-la hoje. Treinar os olhos para lidar com esse "excesso de luz" e, por que não, selecionar parcelas, deixar de lado o excesso superficial alertado por Braudrillard, buscando aprofundar sentidos naquilo que se recebe mas não necessariamente absorve.

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