domingo, 14 de junho de 2009

Um fracasso do capitalismo

Texto de Celso de Barros Rocha, autor do blog Na Prática a Teoria é Outra:

Provavelmente não é uma boa idéia ler só um livro sobre a crise econômica; mas, se for ler só um, leia este: A Failure of Capitalism, de Richard Posner.

Para quem não conhece o cara (que vergonha, hein?) Richard Posner é um dos maiores intelectuais conservadores americanos, um juiz federal respeitadíssimo e o cara que o Gary Becker, Nobel liberalzão, escolheu para fazer blog com ele (link aí do lado).

Quando um cara como esse escreve um livro chamado “Um Fracasso do Capitalismo” (atenção no artigo: não é A crise do capitalismo), você tem que prestar atenção. Ninguém suspeita que o Posner esteja aproveitando a crise para promover uma agenda oportunista, ninguém suspeita que esteja tentando ganhar votos para seu partido, e não é Schadenfreude de órfão da queda do Muro de Berlim. Enquanto Sarah Palin se esforça para superar a Miss Teen South Carolina em sua análise da crise, os melhores intelectuais conservadores já notaram que é hora de repensar o projeto; até para minimizar as perdas e fazer o necessário controle de danos.

O livro tem três teses principais:

(1) A crise é fruto de agentes de mercado agindo racionalmente. Havia duas circunstâncias facilitadoras: (a) a desregulação financeira que vem desde os anos 70, e (b) as possibilidades de crédito barato - em parte pela política de Greenspan, em parte simplesmente porque países exportadores como a China colocaram suas reservas em títulos do tesouro americano. Instituições não-bancárias foram autorizadas a oferecer serviços quase iguais aos dos bancos, sem se sujeitar à mesma fiscalização e exigência de manter reservas; logo depois, os bancos foram autorizados a fazer operações semelhantes, alegando (plausivelmente) que não suportariam a concorrência com as instituições não-bancárias. Seria irracional, para uma empresa individual, correr menos risco pelo medo do risco sistêmico; ela perderia seus clientes para os mais ousados. Os incentivos oferecidos aos executivos também favoreciam a ousadia, e o tipo de trabalho de um hedge fund manager já tende a selecionar os mais risk-loving.

O mercado imobiliário move-se pelo crédito: casa é um negócio caro demais para a imensa maioria das pessoas pagar à vista. Crédito barato, naturalmente, fez a demanda por casa crescer. Mas a oferta de casa é altamente inelástica; todo mundo pode de repente querer ir morar em frente ao Central Park, mas eles não vão demolir todos os prédios e construir outros com o dobro de apartamentos da noite para o dia. Demanda cresce rápido + oferta cresce devagar = aumento de preço. No caso, um aumento dos bons.

É porque o aumento do preço foi ridículamente alto que nego sério resolveu entrar no subprime. Há um cenário em que vale a pena emprestar 100% do valor da casa que seu cunhado desempregado quer comprar: é se você acha que a casa vai aumentar de preço mais que 100%, de modo que o sujeito, só de ter a casa, vai ter a grana pra te pagar. O exemplo é extremo, mas não tão diferente assim do que aconteceu.

Mas não tinha uma hora em que todo mundo viu que era bolha? Bom, deve ter tido. Mas como é que você sabe que a bolha vai estourar agora, e não, sei lá, daqui a dois anos? Eu li na The Economist uma previsão de crise uns dois anos antes dela acontecer. Quem saiu do mercado na época perdeu grana, e se ganhar grana pros outros era sua carreira, provavelmente perdeu o emprego. Em retrospecto, é claro que todo mundo fez besteira, mas na hora não era fácil dizer.

[acho que teve uma hora que era; mas vamos continuar com o argumento do Posner]

Portanto, não é necessário postular nenhuma irracionalidade dos agentes para explicar a crise. Era só o capitalismo desregulamentado, depois de um surto de crescimento mundo afora, doing its thing. Mas, vem cá, será que o governo não fez nenhuma merda? Isso pouparia muita tinta para rever tudo que andamos dizendo sobre o mercado nos últimos anos. Não?

(2) Sim, mas não se animem. O governo cometeu vários erros ao lidar com a crise. Greenspan não deveria ter reduzido os juros no começo do milênio. Bernanke e Paulson cometeram diversos erros, em especial o de chegarem atrasado ao problema, e deixarem o Lehman quebrar. Inacreditavelmente, as duzentas agências reguladoras americanas, além de regularem menos que meu superego, não tinham um plano de contingência para uma crise sistêmica, e ainda deixaram o Madoff se safar por anos e anos.

Mas nada disso explica a crise. Os juros baixos de Greenspan ajudaram, mas a grana chegando da China provavelmente baixaria o preço do crédito de um jeito ou de outro; e a bolha começou antes. As políticas para promover a compra da casa própria davam incentivos para os bancos emprestarem, mas não os forçavam a nada, e não há motivo para crer que eles não o fariam de qualquer jeito - muito pelo contrário, pelos motivos expostos em (1).

O erro do governo foi ter comprado a idéia de que ele não devia fazer nada. A desregulamentação financeira foi excessiva, e durante todo o processo as autoridades econômicas - maciçamente recrutadas no mercado financeiro - acreditaram que, uma hora, o mercado ia resolver o problema. Se o governo tivesse aparecido mais cedo, talvez pudéssemos estar lidando com uma recessão mais ruinzinha, ao invés de uma depressão.

E não dá para ser muito otimista com relação à influência da ideologia sobre os economistas, as autoridades, ou, enfim, os seres humanos. ATENÇÃO, ESTUDANTES DE HUMANAS (SIM, ECONOMIA É HUMANAS), ISSO É IMPORTANTE: Os problemas econômicos e sociais são muito complexos, os casos relevantes costuma ser em número insuficiente para análise estatística, quando você amplia o número de caso os contextos começam a ser muito diferentes, de modo que não há uma expectativa razoável de que cheguemos a um acordo, com base científica, sobre grande parte das questões mais importantes. Se não der pra resolver cientificamente, resolve-se ideologicamente.

O importante é reconhecer isso e ser pragmático. Daí que é uma boa coisa que Obama, como Roosevelt antes dele, está tentando vários remédios ao mesmo tempo. No final ninguém vai saber o que deu certo (ou errado), mas as brigas futuras entre os economistas são o menor de nossos problemas agora.

(3) Em outros termos, por mais que a era Tatcher tenha levado a progressos inegáveis, o pêndulo andou demais para o outro lado. Os conservadores precisam aceitar que o mercado financeiro oferece risco sistêmico, e precisa ser mais regulado. É provavelmente uma boa coisa que os PhDs de física não vão mais ter empregos no sistema financeiro mexendo com coisas complicadíssimas, e vão, enfim, voltar a descobrir e inventar coisas. É mais útil que os conservadores se preocupem com os excessos de regulação que podem vir agora do que se negar a admitir que mais regulação (talvez internacional) é necessária.

Entretanto, diz o Posner, talvez essa não seja a melhor hora para reformar o sistema: o fundamental é sair da crise; tentar reformar o negócio enquanto ainda estamos afundando é colocar tarefas demais na mão das autoridades, que devem se concentrar em fazer a economia virar de novo.

Enfim, recomendadíssimo. Ainda tenho curiosidades sobre a crise, aguardem mais posts sobre isso, mas o livro me ajudou imensamente. É óbvio que alguém devia traduzir, mas, se forem fazer isso, por favor, escutem esse apelo desesperado: caprichem, não estraguem um texto tão cuidadosamente escrito. Até agora, o melhor livro do ano.

PS: quanto tempo até alguém aparecer dizendo “mesmo um conservador como Posner admite que o capitalismo já era”?

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O artigo original pode ser lido clicando aqui.

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