Foto: Gianne Carvalho, viaduto, Rio de JaneiroPor João Villaverde
O texto "Perdedores globais", de Robert Kurz, coloca duas questões cruciais para o debate social dos tempos atuais: a primeira questão é quanto ao surgimento de empresas multinacionais e a consequente desintegração das regras nacionais para dar cabo de regulação e controle das empresas, que não mais respondem a uma pátria única. O segundo ponto é quanto a perda de poder do Estado nacional, abrindo uma veia crítica distinta da crítica marxista clássica, depositada no papel do Estado como chancela do capitalismo concorrencial (para usar termos leninistas).
No presente artigo, discutirei as duas questões proeminentes de "Perdedores globais" de maneira conjunta - até porque são complementares - , tendo a problematização da globalização do século XX como pano de fundo.
Num primeiro momento, localizado pelo autor nos anos 60 do século XX, a internacionalização das empresas não foi capaz de atingir a coesão tradicional dos Estados nacionais, isto é, o poder estatal permanecia concentrado no sistema, controlando, seja por meio dos impostos, seja por meio de sua força como aparelho de ideologia, a racionalidade do desenvolvimento das instituições privadas nacionais. Estas começaram a ganhar musculatura internacional especialmente a partir dos anos 80 quando o centro do sistema capitalista mundial, Estados Unidos e Inglaterra, promovem uma verdadeira revolução dos modos - culturais e econômicos - e regras do jogo.
A partir de Ronald Reagan (EUA, 1981-1988) e Margaret Thatcher (1979-1990), o sistema capitalista passa a desinchar o Estado e a liberar e afrouxar sua regulação - nacional - sobre as empresas e, mais genericamente, sobre o mercado. Este torna-se global, conforme o modelo (denominado "neoliberal") é adotado por outros jogadores do sistema.
É a partir daí que "a fidelidade à economia nacional vai por água abaixo", conforme anota Kurz. "Não há mais nenhuma estratégia de desenvolvimento econômico". A economia privada avança todos os limites, ultrapassando barreiras nacionais - tidas como supremas no período pós-Segunda Guerra - e impulsionando o comércio exterior e os mercados financeiros para o centro do debate. Comercializar e fazer negócios com diferentes nações e, ao mesmo tempo, operar em diferentes praças do mercado financeiro mundializado passa a ser tudo o que importa. É essa maneira de operacionalizar e racionalizar o sistema que é embutido em ideologia - que, evidentemente, precede tudo isto - e a partir daí passa a ser reverberada por todos os atores do sistema: os aparelhos privados de ideologia, conforme destacara Antonio Gramsci, tendo a frente as empresas internacionalizadas, os bancos de investimento e a mídia, que se torna global também, por meio do desenvolvimento tecnológico das informações, transmitidas por televisão e pela internet.
O Estado é cada vez menos o "capitalista ideal", conforme denominou Marx. Ele passa a perder o poder de chancela sobre o estoque do capital privado nacional, passando a funcionar como peão do sistema, e não mais como chefe. Seu papel agora é outro: alavancar a plataforma de crescimento das empresas, abrindo caminho - de ordem econômica produtiva e fiscal - e sensibilizando diferentes atores. Sua forma é dada pelo mercado, nacional e internacional, que passa a ditar o Estado como manivela de lucros e manutenção do jogo. A velha "economia política" transforma-se em "política econômica". O Estado agora é mínimo e, finalmente para uns, é capturado.
Com a diminuição da competência do Estado, desfaz também a contradição entre "libertação nacional e imperialismo". A maioria dos regimes fundados na acumulação nacional fracassou. Grande parte das indústrias estatais, consideradas pouco lucrativas pelos padrões internacionais, é desativada ou privatizada, isto é, comprada geralmente por empresas globalizadas.
No Brasil, a união entre dois players nacionais para formar uma das maiores cervejarias do mundo - a Ambev, em 1999 - foi "vendida" pelos aparelhos, privados e estatais, de ideologia do sistema como preponderante para a inserção, das empresas e do Brasil nação como consequência, no mundo globalizado. A união entre as empresas - gigantes já - Brahma e Antartica serviria ao Brasil como "ganhos de escala", para se utilizar do linguajar industrial incorporado pela análise financeira globalizada, para formar musculatura na disputa do comércio internacional. Cinco anos depois o conglomerado brasileiro foi vendido para uma mega-empresa da Bélgica, criando a Inbev, a maior cervejaria do mundo. O capital passa a ser brasileiro e belga, com soberania deste último, numa operação agilizada por bancos de investimentos americanos e franceses, todos com acionistas de diferentes continentes.
Do outro lado, há o capital financeiro autônomo, sem pátria, que ruma de um país a outro sem qualquer distinção cultural ou social. Sua preocupação é uma só: acelerar lucros. O capital estrangeiro não visa mais ao desenvolvimento do país como um todo e é preciso atraí-lo com a redução de impostos e outras regalias. Entra-se na amarra do Estado pós-moderno, de nossos tempos atuais. O papel do Estado, conforme definido e delimitado pelo mercado globalizado, é um só: diminuir a regulação sobre o capital estrangeiro, isto é, cortar impostos sobre o lucro e taxas sobre a operação. Ao mesmo tempo, deve transformar o país (entenda-se por isso, o mercado financeiro nacional, que é exemplificado pelas bolsas de valores e de negociações em mercados futuros) em uma grande vitrine com preços convidativos ao capital sem pátria.
Novamente, podemos exemplificar esse jogo analisando o papel do Estado brasileiro a partir de 1990 e 1991: a elevação das taxas de juros a níveis estratosféricos, que remuneram o capital internacional e a retirada das regras e do controle sobre operações deste tipo. Poucos anos depois, com o controle da inflação de preços - que retirava boa parte dos lucros com taxas de juros - as operações com juros no Brasil tornam-se únicas: lucro fácil com nenhum risco. Finalmente, o Estado brasileiro toma para si a missão de controlar a volatilidade da taxa de câmbio, mantendo a moeda em patamares estáveis - e valorizados - que ajudam a ampliar o lucro das operações do mercado financeiro.
"O resultado, porém, é a diminuição do número de empregos, causada pela racionalização, a evasão dos lucros e a ausência de garantias para investimentos", vaticina Kurz. Com a crise econômica mundial que vivemos, originada no centro do sistema (os Estados Unidos) e amplificada pelos jogadores majoritários (os países da União Europeia) será possível reverter esse jogo?
A resposta, como veremos, está no passado. Afinal, o sistema é uma eterna repetição de si mesmo.
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